A era ‘reputation’ chega para todas: em ‘DOCE 22’, Luísa Sonza faz dos pepinos uma deliciosa salada

O lançamento da cantora gaúcha é um dos melhores álbuns pop brasileiros dos últimos anos

Ana Carolina Santos
8 min readJul 30, 2021

--

Luísa Sonza segura pêssego, mas neste texto trataremos de limões [Felipe Grafias/Divulgação]

Todo mundo odeia a Luísa Sonza. Partindo desse mote, o jornalista cultural e youtuber Anderson Vieira tentou entender o porquê de tanto hate em cima da cantora em um vídeo publicado no já longínquo ano de 2018. Desde então, muito mais coisas aconteceram na vida e na carreira da artista — coisas as quais ela não poderia prever. Se naquela época a gaúcha já era odiada, o pico da perseguição chegou no ano de 2020.

A pandemia foi difícil mentalmente para todo mundo. Mas foi especialmente desafiadora para Luísa, o youtuber Whindersson Nunes e o cantor Vitão. O casamento dos dois primeiros chegou ao fim em abril do ano passado (aliás, a divulgação do divórcio por parte dos artistas aconteceu nessa data). Logo depois, Luísa e Vitão tornaram público o seu namoro. Foi aí que a cantora foi acusada de ter traído Whindersson, e Vitão recebeu a alcunha de “talarico” (pessoa que “rouba” a/o companheira/o da/o amiga/o).

Enquanto era casada com Whindersson, Luísa já era chamada de “puta”, “vagabunda” e “interesseira” na internet. Com a separação, a quantidade de xingamentos foi elevada à enésima potência. A artista precisou se ausentar das redes sociais inúmeras vezes para cuidar da saúde mental. Enquanto isso, ela escrevia sobre suas dores e trabalhava no seu segundo álbum, DOCE 22, sucessor do moderadamente elogiado Pandora (2019).

A princípio, DOCE 22 seria lançado em junho. Contudo mais um fato fez com que uma avalanche de ódio caísse sobre Luísa: o filho de seu ex-marido e da atual namorada dele, Maria Lina Deggan, nasceu com apenas seis meses de gestação e acabou morrendo no dia seguinte ao seu nascimento. Por alguma razão esquiva, alguns fãs de Whindersson culparam Luísa pela morte do pequeno João Miguel. A cantora foi tão atacada que postou stories chorando e novamente passou um tempo offline. Viu-se na posição de ter de postergar o lançamento do álbum no qual vinha trabalhando há 14 meses.

Em 17 de julho, véspera de seu aniversário, ela decidiu botar o disco no mundo. Por uma questão conceitual: as músicas de “DOCE 22” falam sobre tudo que viveu enquanto tinha 22 anos. Não faria sentido lançá-lo tendo 23. Para o espanto de muita gente (e nenhuma surpresa de quem já acompanhava de perto sua carreira), o álbum está sendo MUITO bem recebido, tanto pela crítica, quanto pelo público. Vem batendo recordes nacionais e internacionais no Spotify. Tem sido elogiado por pares de Luísa e por artistas de outros âmbitos.

Limonada suíça

Eu não conhecia a música de Luísa Sonza para além dos singles. E eles nunca me impressionaram. Resolvi conferir DOCE 22 por causa de todos os elogios feitos a ele — especialmente pelos vídeos de Anderson Vieira e de Ciro Hamen, do canal O Brasil que deu certo. Fui invadida por aquela sensação gostosa de descobrir algo novo e gostar disso. Tenho o escutado quase todos os dias desde então.

DOCE 22 é inaugurado justamente com os três xingamentos mais ouvidos por Luísa: puta, vagabunda e interesseira. A primeira faixa, grafada como INTERE$$EIRA (assim, em maiúsculas e com cifrões), é muito clara em seu intento: Luísa quer que os haters saibam que, enquanto eles a xingam, ela tá lucrando cada vez mais [“Devagarin eu vou fazendo din(heiro)”]. Ela assume seus dias ruins (“Confesso, não é fácil ser braba todo dia”), mas conta vantagem com os incels: “pode falar, pode falar, meu som continua em primeiro lugar”.

Em seguida, vem VIP *-*, parceria com o rapper estadunidense 6LACK e atual single. Ela continua falando de dinheiro (“Eu gasto em dólar, money, e isso é caro, bae”). Afirma que “até quer amor, mas seus olhos estão no game”, ou seja, na sua vida profissional. Depois MODO TURBO, parceria com Anitta e Pabllo Vittar — o trio mais poderoso da música brasileira atualmente — , continua o agito do álbum.

Mas é em 2000 s2 que Luísa começa a impressionar. O que mais se destaca na faixa é a produção, que na hora te evoca lembranças dos hits de Beyoncé, Britney Spears e Christina Aguilera do começo dos anos 2000. A homenagem é explícita e intencional. Não soa como cópia, não soa batido. Soa fresh. E a letra é divertidíssima: Luísa se orgulha do chá de boceta que aplicou em Vitão.

MULHER DO ANO XD é outro destaque da primeira fase do disco — dividido entre uma parte mais pop, pra dançar, e outra mais introvertida, com baladinhas (sacada genial, aliás). A sétima canção do disco é o que a internet gosta de chamar de “pornô para cegos”. Admiro a coragem da Luísa em falar abertamente sobre a sexualidade feminina em suas músicas. Nós todas só vamos gozar quando falarmos sem amarras sobre sexo. (Mas isso é assunto para outro texto.)

O single melhor sozinha :-)-: abre a segunda metade de DOCE 22 — as duas partes são separadas por um interlúdio em que Luísa filosofa sobre o amor. Ao contrário da primeira, na segunda seção as faixas são grafadas em minúsculas. Conceito, conceito, conceito. Nela, a cantora discorre sobre a hesitação em se abrir para um novo amor após um fim doloroso de relacionamento. Todo mundo já passou por isso. Talvez um dos muitos trunfos deste álbum seja a fácil identificação que o ouvinte sente ao consumi-lo e, ao mesmo tempo, como esses temas quase saturados são acessados de forma original, com uma marca própria na composição e na produção.

penhasco. é uma das canções mais comentados do CD. Aparentemente foi escrita logo após o fim de seu casamento. É uma balada muito pessoal em que Luísa dá a entender que, à época, ainda amava Whindersson e queria uma reconciliação — o que ratifica o que ambos revelaram no Twitter recentemente: foi ele quem pediu o divórcio. É muito corajosa a decisão de ter incluído penhasco. no álbum.

Chegou a hora de eu destilar todo o meu amor por caos / flor ***. Pisciana que sou, derreti com a declaração de amor que Luísa faz a Vitão. E curti muito a pegada “safada” que a música tem, apesar de ela ser uma baladinha fofa (“Me desmistifica, me lambe, me instiga e me mostra a tua” — a gente pode imaginar o que ela quer que ele mostre). A canção faz referência à infame Flores, single lançado pelo casal no ano passado, cujo clipe bateu o recorde de dislikes no YouTube.

Em o conto dos dois mundos (hipocrisia), Luísa desabafa com seu pai sobre todas as dificuldades que tem passado e a saudade de sua cidade natal. Natural de Tuparendi, pequeno município de 7 mil habitantes no noroeste do Rio Grande do Sul, a atual habitante de São Paulo confidencia: “Queria ir pra casa, no meio do mato, que a gente bate bola e tu me ouve cantar no quarto”. Ela assinala a injustiça das críticas que recebe na internet: “Não tem a ver com o meu jeito de pensar, nem com meu jeito de cantar.”

Luísa escolhe fechar o álbum com uma parceria. Lulu Santos empresta sua voz icônica (e seu peso artístico) a também não sei de nada :D, que parece ser uma irmã da faixa anterior. Coisa bastante comum em álbuns gringos é duas (ou mais) músicas conversarem entre si, citarem uma à outra. Terem melodias parecidas, mas com diferenças marcantes, como um remix de si mesma. Lorde fez isso magistralmente com Sober e Sober II e com Liability e Liability (Reprise), no fantástico Melodrama (2017). (Recomendo com força esse disco da cantora neozelandesa.)

Ao fim da música, Luísa comemora: “Bom, gente, é isso! Tenho uma música com o Lulu Santos. E é ele quem tá tocando a gaita. […] Ai, meu Deus, zerei a vida.” A verdade é que Luísa Sonza pode ter zerado mesmo a vida com DOCE 22. É uma das obras mais ambiciosas da cena pop mainstream brasileira. A qualidade técnica da produção, a coesão sonora e temática e todo o conceito por trás do álbum tem muito a ensinar a artistas brasileiros com mais tempo de estrada que Luísa. A gaúcha pegou os limões que a vida lhe deu e fez uma limonada suíça daquelas gourmet que custam caro porque são mais gostosas mesmo.

[Há, ainda, três faixas a serem reveladas: CAFÉ DA MANHÃ ;P, com a cantora Ludmilla; ANACONDA *o* ~~~, com a estadunidense de origem porto-riquenha Mariah Angeliq; e fugitivos :), com o brasileiro Jão. Todas serão lançadas como singles. Luísa ainda tem muito a nos mostrar. Vem aí.]

Luísa Sonza, Taylor Swift e a misoginia

Em 2017, a cantora estadunidense Taylor Swift lançou um de seus álbuns mais controversos, o reputation (coincidência ou não, grafado assim, em minúsculas). Ele veio a público depois de todo o imbróglio entre a artista, o rapper Kanye West e a empresária Kim Kardashian, à época, esposa de Kanye (pra quem não conhece a história, as meninas do canal Naty e Isa fizeram uma explicação bastante completa no YouTube).

Conscientemente, Taylor escolheu não dar entrevistas ao longo da era reputation: “There will be no further explanation. There will just be reputation” [“Não haverá mais nenhuma explicação. Haverá apenas reputação”], escreveu no Instagram. O álbum seria sua resposta a todas as críticas que recebera no ano anterior. Uma tentativa de retomar a narrativa para si.

Taylor Alison Swift é branca, loura, magra, rica e estadunidense. Possui uma das carreiras mais bem-sucedidas da história da música. Luísa Gerloff Sonza é branca, loura, magra, rica e sulista de origens alemã e italiana. Apesar de todos os seus privilégios, elas não conseguem escapar da inexorável condição de ser mulher. Não importa o que você faça. Você sempre vai ser criticada.

No começo de sua carreira, diziam que Taylor era puritana demais. Quando ela começou a namorar famosos como Joe Jonas e John Mayer, a taxaram de namoradeira demais. Antigamente ela não se posicionava politicamente e era criticada por isso. A partir de 2018 começou a falar abertamente contra o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e a apoiar a causa LGBTQIA+ com mais ênfase e, adivinhem, disseram que ela estava tentando surfar numa onda progressista. Por volta de 2015, assinalavam quão esquálida Taylor estava. Em 2017, ela ressurgiu mais curvilínea e claro que isso foi apontado como defeito.

Enquanto estava com Whindersson, Luísa foi acusada de apenas estar com ele pela visibilidade que o relacionamento poderia trazer para ela. Quando separou-se, apontaram-lhe o dedo por “abandonar um homem que tem depressão”. Ao seguir a vida e namorar outra pessoa, partiram do pressuposto de que ela havia iniciado tal relacionamento enquanto era casada. Quando mais nova e gravava vídeos tocando violão no quarto, chamavam-na de sem graça. Com o passar dos anos, mudou seu estilo e abraçou o pop. Muitos falaram que estava forçando uma persona femme fatale que não condizia com ela.

reputation e DOCE 22 são marcos nas carreiras de ambas as artistas. Não apenas por serem o produto de um período negativo e traumático, em que foram vítimas da misoginia impregnada na sociedade. Não apenas pela inegável qualidade sonora das obras. Mas também pelo fato de a aspereza e a acidez direcionadas a seus algozes conviverem harmoniosamente com a ternura de se encontrar o amor em meio ao pior momento de suas vidas. Talvez seja verdade o que dizem: o Universo equilibra nossas vidas em uma balança e nos recompensa após termos pendido para o lado das experiências ruins. Depois da tempestade vem a bonança. E um álbum número um nos charts.

--

--

Ana Carolina Santos

Produzo o podcast Caracoles e escrevo sobre futebol na newsletter Posta-restante (https://linktr.ee/santosacarolina)