‘Antropoceno’ e o cinismo esperançoso de John Green

Em sua estreia na não ficção, autor encontra equilíbrio entre trivialidades e a complexidade da vida (humana ou não)

Ana Carolina Santos
8 min readMay 5, 2022

É difícil rastrear, em retrospecto, a gênese de um interesse. Precisar com exatidão o momento, o objeto, a fagulha que fez despertar uma curiosidade até então inexistente. Penso que comecei a me interessar pela evolução da espécie humana após ver um short sobre o Homem de Neandertal no YouTube (shorts são a versão TikTok do YouTube, assim como os Reels são a versão TikTok do Instagram — na internet, nada se cria, tudo se copia).

Havia muitos anos eu não pensava nos neandertais. Nem no Australopithecus. Nem no Homo erectus. Talvez desde as aulas de História do ensino fundamental. É possível que tenha tido uma lição ou duas sobre arte rupestre na faculdade de comunicação. Mas nada muito além disso.

O Homo neanderthalensis foi uma das espécies de humanos que conviveu (e chegou a cruzar) com a nossa, o Homo sapiens. Surgiram na Europa e no Oriente Médio há cerca de 400 mil anos e, devido a fatores como mudanças climáticas, escassez de recursos e a competição com o Homo sapiens, foram extintos há 28 mil anos.

Homem louro™: o ápice da evolução humana

Por causa dos neandertais, fui pesquisar sobre as outras espécies humanas. (Re)Aprendi que a evolução não é uma escadinha (como essa imagem que a cultura nos enfia goela abaixo quando somos crianças), em que uma espécie vai se transformando na “geração” seguinte. Houve uma interpolação entre esses diversos humanos, e nós somos o resultado dessa amálgama. Yuval Noah Harari escreve sobre isso em “Sapiens: Uma Breve História da Humanidade” (L&PM, 2011):

“Esse modelo linear dá a impressão equivocada de que, em determinado momento, apenas um tipo de humano habitou a Terra e de que todas as espécies anteriores foram meros modelos mais antigos de nós mesmos. A verdade é que, de aproximadamente 2 milhões de anos a 10 mil anos atrás, o mundo foi habitado por várias espécies humanas ao mesmo tempo. E por que não? Hoje há muitas espécies de raposas, ursos e porcos. O mundo de 100 mil anos atrás foi habitado por pelo menos seis espécies humanas diferentes. É nossa exclusividade atual, e não a multiplicidade de espécies em nosso passado, que é peculiar — e, talvez, incriminadora.”

Enquanto me informava na internet sobre de onde viemos e para onde vamos, eu procurava um livro para ler. Qualquer livro. Havia mais de seis meses que não tocava num livro. Deve ser o período mais longo em que fiquei sem ler desde a alfabetização. Em geral, escolho os de ficção. Mas aí trombei com “Antropoceno: notas sobre a vida na Terra” (Intrínseca, 2021), primeira obra de não ficção do John Green, um autor muito lido por mim na adolescência.

O título foi o que me atraiu. Antropoceno é o nome que alguns cientistas dão para a atual era geológica, em que as ações humanas — desmatamentos, poluição do ar, derretimento das geleiras e consequente aumento dos níveis dos oceanos — têm afetado significativamente as estruturas do planeta que fazem com que a vida (animal e vegetal) seja possível.

Como a minha intenção era retomar o hábito da leitura, achei que “Antropoceno” seria uma boa escolha, pois unia um tema que me tocava e um autor cuja escrita já me era familiar. Eu sabia que o livro teria, no mínimo, um humor compatível com meu gosto. E ele foi muito mais do que isso.

Crédito: Editora Intrínseca

Antropoceno” é composto de ensaios escritos entre 2020 e 2021. Portanto, inescapavelmente, a pandemia permeia o livro. Mas não é como se o Grande Tema do livro fosse os efeitos do Covid-19. Pelo contrário. Por causa da quarentena, o autor mergulhou em leituras das mais improváveis e diversas, que vão da origem do ursinho de pelúcia ao desenvolvimento do teclado QWERTY.

O livro é uma grande coleção de trivialidades (no melhor sentido do termo), aliadas a reflexões — por vezes muito pessoais — sobre o isolamento, saúde mental, arte, memória, juventude, amadurecimento, paternidade, luto, crença e por aí vai. Cada um dos ensaios parte de um fato por vezes considerado inútil (você sabe como surgiram as competições de quem come mais cachorros-quentes? Eu também não sabia. Agora tô sabendo) e extrapola o assunto, chegando a filosofias sobre a existência, permeadas por citações literárias.

A ideia para o livro surgiu do hábito da humanidade de avaliar coisas em uma escala de até 5 estrelas. Hotéis, restaurantes, livros e até medicamentos. “O remédio que tomo para tratar meu transtorno obsessivo-compulsivo tem mais de 1.100 avaliações no Drugs.com, com uma média de 3,8”, comenta o autor na introdução. Por curiosidade, fui checar a nota do remédio que tomo para tratar a depressão: 3,5, avaliado por 2.553 pessoas.

Ao fim de cada ensaio, JG dá uma nota de 1 a 5 para o tema abordado. Por exemplo, o filme de animação “Os pinguins de Madagascar” (DreamWorks, 2014) recebe 4,5 estrelas do autor. Enquanto que, na outra ponta do espectro, a bactéria Staphylococcus aureus, que pode causar infecções generalizadas e levar à morte, recebe — como não poderia deixar de ser — apenas uma estrela.

Antropoceno versus o antropocentrismo

O nome do livro em inglês é “The Anthropocene Reviewed: Essays on a Human-Centered Planet” (O antropoceno resenhado: ensaios sobre um planeta centrado no ser humano, em tradução livre). No entanto, JG se esforça para refutar a ideia de que nós sejamos os protagonistas da história da Terra.

Ele zomba de nosso senso de autoimportância (“[…] talvez as ansiedades apocalípticas sejam uma consequência da impressionante inclinação da humanidade ao narcisismo. Como o mundo poderia sobreviver à morte do seu mais valioso habitante — eu?”) e nos coloca em nosso lugar: “[…] para muitas formas de vida, a humanidade é o apocalipse.”

Os feitos humanos não são ignorados , mas ele também traz para o centro da narrativa gansos-do-canadá, lemingues, árvores de mais de 300 anos, ursos abatidos por puritanos, animais extintos pela ação humana, dentre outras vidas tão importantes quanto as nossas, e colocando em perspectiva o nosso tempo de vida (cerca de 300 mil anos) comparado à idade estimada da Terra (4,5 bilhões de anos).

Nós somos um espirro. Um soluço impertinente que atrapalha a boa convivência deste grande condomínio que é o mundo: “[…] talvez a vida na Terra só precise de alguns poucos milhões de anos para se recuperar dos nossos danos.” Oxalá.

Antropoceno americocêntrico

Uma das críticas que faço ao livro é seu excessivo… americocentrismo. Claro que o autor fala do ponto de vista de um estadunidense que sempre morou nos Estados Unidos. E eu o estou consumindo com a ciência de que ele é um estadunidense que sempre morou nos Estados Unidos — fica a autocrítica por meus interesses colonizados. Entretanto, por um momento me questionei: “eu realmente quero saber dessas miudezas do American way of life?”

Veja bem: querer, ativamente, eu não quero. Mas foi divertido descobrir uns 70% dos fatos relatados, como que o primeiro supermercado como conhecemos hoje surgiu em Memphis, no Tennessee, e se chamava Piggly Wiggly. Os outros 30% poderiam ter sido ocupados por histórias do resto do mundo.

O livro cresce quando expande suas fronteiras (o ensaio sobre a Islândia é um dos destaques de toda a obra), mas JG chega, no máximo, à Europa. É de surpreender que um livro cujo principal tema seja a raça humana não dê a atenção devida ao continente africano, local de origem dos primeiros exemplares da espécie.

Melancolia sem charme

Sem dúvidas, o aspecto mais marcante do livro é como JG aborda os transtornos mentais, especialmente a depressão, nos ensaios “Meu amigo Harvey” e “Sicômoros”. O autor sempre foi vocal sobre essa parte de sua vida, e em sua última obra de ficção, “Tartarugas até lá embaixo” (Intrínseca, 2017), o transtorno obsessivo-compulsivo da protagonista é um dos fios condutores da trama. [Ninguém me perguntou, mas esse é o romance mais fraco de sua carreira. Ele se sai muito melhor ao retratar adolescentes que convivem com o câncer em “A culpa é das estrelas” (2012)]

Pouquíssima gente consegue ser bem-sucedida ao tentar explicar a depressão do ponto de vista de quem a sofre. Em seu mais recente especial de stand-up para a Netflix, “É de mim mesmo” (2022), o humorista piauiense Whindersson Nunes faz graça com sua condição: “A depressão é uma coisa que você não consegue explicar, as pessoas não conseguem entender e aí fica por isso mesmo.”

Minha mãe assistiu ao especial na tevê da sala, por volta do fim de fevereiro. Ao ouvir essa piada, eu dei a primeira gargalhada verdadeira em meses. Em seguida, quase chorei, porque (1) percebi que ainda podia rir e, mais ainda, podia achar graça da minha desgraça (sem a intenção do trocadilho); (2) com sua simplicidade certeira, Whindersson conseguiu exprimir o que eu nunca consegui — aliás, tentei aqui e aqui — e (3) a minha mãe estava assistindo, e eu senti que, através daquela frase, consegui me comunicar um pouquinho com ela.

No ensaio “Doença como metáfora”, Susan Sontag escreve que “a depressão é uma melancolia sem o charme.” Para John Green, viver com o transtorno é “ao mesmo tempo completamente entediante e totalmente excruciante” (certifico e dou fé). Ele conta de uma crise que teve com uns 20 e poucos anos, em que não acreditava que os tratamentos psicológico e psiquiátrico funcionariam “porque não achava que o problema era químico.”

“Achava que o problema era eu, no meu âmago. Eu não tinha valor, era inútil, imprestável, um caso perdido.” Foi impossível não ouvir ecos dessas palavras na minha mente. Não mais do que três meses atrás eu também achava que não adiantava nada. (Alerta de spoiler: adianta, sim.)

Falando nisso, o autor usa uma imagem muito interessante no ensaio “Sicômoros”: ele conta que sua depressão se manifesta através de um jogo chamado “De que adianta?”. Quando seu cérebro começa a jogar esse jogo, “a luz branca do desespero” o torna “inerte e apático”, e ele precisa ser esforçar para fazer qualquer coisa. Em meio a ensaios menos inspirados ao fim do livro, “Sicômoros” é a volta de JG à boa forma.

“Quando o jogo está em ação, tenho certeza de que nunca vai acabar. Mas isso é mentira, assim como a maioria das certezas. O agora sempre parece infinito, e nunca é.” Falei algo parecido para minha psiquiatra numa consulta de semanas atrás, sem o mesmo brilhantismo: “Quando estou bem, acho que nunca mais ficarei mal. E quando estou mal, acho que nunca mais ficarei bem.”

“Acredito que a desesperança é uma forma de dor. Um dos piores tipos. Para mim, ter esperança não é apenas um exercício filosófico ou uma noção sentimental, é um pré-requisito para sobreviver.”

(Trecho do ensaio “Meu amigo Harvey)

Na canção “evermore”, do álbum de mesmo nome, Taylor Swift canta: “I had a feeling so peculiar that this pain would be for evermore” (Eu tinha uma sensação tão peculiar de que essa dor continuaria para sempre, em tradução livre). Como John Green, Swift termina a canção numa nota esperançosa e subverte a declaração, substituindo would por sua negativa, wouldn’t.

Para “Antropoceno: Notas sobre a vida na Terra”, eu dou 4 estrelas.

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