Coisas que a gente vê (e ouve) quando tá prestando atenção
Sendo uma protagonista com apenas R$ 4,30
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Este texto (originalmente publicado na newsletter Posta-restante) é o sucessor espiritual do mais recente episódio do meu podcast. Ouça ou leia. Se quiser. Não é obrigatório. Mas eu recomendo. 🤪
Tenho optado por cultivar o tédio. Ao invés de enfiar a cara no celular ou, com menos culpa, num livro, escolho por observar a paisagem a partir da janela do ônibus. E me entretenho com meus pensamentos. Isso quando tô saudável mentalmente. Do contrário, conviver com eles é quase torturante. Aí o modus operandi é me entupir de músicas e podcasts pra não ter que pensar. Mas quando tô bem… Que delícia é se perder nas historinhas, nas memórias agradáveis, nas ideias bobas…
Fui exercer meu direito inalienável de ser protagonista e acabei virando a vilã do filme de alguém. Enquanto me entregava aos devaneios a bordo do 355 (Madureira x Praça Tiradentes), uma moça sentou ao meu lado na altura da Penha. Sacou o celular e começou a assistir vídeos com o alto-falante no volume máximo. Em outro momento da minha vida, teria apenas engolido o desconforto e seguido em frente, desejando que ela descesse logo do ônibus — minha viagem iria até o Centro da cidade. Mas não agora. Agora eu visto a carapuça de protagonista do filme da minha vida e não deixo nada passar.
“Você poderia, por favor, usar o fone de ouvido?”, perguntei gentilmente. E:::::::::: ela não recebeu bem. Fomos discutindo (eu com educação; ela, mais exaltada) até a Av. Brasil, altura de Benfica, onde ela desceu. Não recuei um milímetro. Ora, se tem uma coisa da qual me orgulho sobre mim é que passei com louvor pela fase da internalização da lei. Da lei literal, inclusive. Existe uma lei municipal de 2014 que proíbe o uso de alto-falante nos ônibus de linha. Não pode, não pode. É a vida em sociedade. Tenhamos bom senso.
Desci em frente à Maternidade Pro Matre, hoje desativada, mas onde nasci, há 27 anos e seis meses. (Fun fact: o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o músico Erasmo Carlos também nasceram ali.) Peguei o calçadão do Boulevard Olímpico e cheguei à estação do Cais do Valongo. Tava muito cheia, o que significava que o VLT estava atrasado. Então optei por ir andando até a Praça Mauá. E que bom que tomei essa decisão.
Pensar que, há dez anos, estagiava no Santo Cristo e nada disso existia. Essa área de lazer. Pessoas de todo lugar, famílias do subúrbio, cariocas e turistas, caminhando, andando de bicicleta, de patins, tirando fotos, meio perdidas porque ainda não aprenderam como o VLT funciona (eu). É muito legal testemunhar essa mudança (pra melhor!) na geografia da cidade. Antes, o Elevado da Perimetral deixava a Av. Rodrigues Alves escura, mesmo de dia. A zona portuária só estava lá, servindo de conector entre a zona norte e o Centro. Agora tem viço.
O sol queimava a minha pele. Não de um jeito incômodo. De um jeito “que gostoso morar numa cidade que faz calor no inverno”. Estava feliz. O Fluminense havia ganhado de 3 x 1 do Olimpia na noite anterior. Por toda a cidade, tricolores orgulhosos ostentavam as três cores que traduzem tradição. Não eu. Eu vivia meu orgulho secretamente. Decidi que só vou usar a brusinha tricolor que costurei nos jogos da Copa Libertadores da América. Duas partidas com ela, duas vitórias. E nenhuma lavagem no intervalo. Ou seja: vai ficar sem ser lavada até depois do dia 4 de novembro, data da final. Eu não faço as regras. Superstição no futebol é coisa séria. (Disclaimer: ela continua cheirosinha, pois sou pobre, mas limpinha.)
Um rapaz bonito, com a camisa do Fluminense, andava de bicicleta na minha direção, e eu fiz o duplo L pra ele. Ele abriu um sorriso e proclamou “Faz o L!!!!” É muito especial participar dessa comunidade, ter esse código interno com outras pessoas. No filme da vida dele, eu sou a moça bonita, de chapéu, caminhando pelo Porto, que fez o L pra ele. Bonita, estilosa e tricolor. Que partidão, essa moça. (Aposto que você, leitor imaginário, o imaginou branco. Pois é, ele era negro. Enquanto pessoa negra, acho importante evidenciar que o rapaz bonito da minha história é negro.)
Cheguei à Praça Mauá, onde estão localizados o Museu do Amanhã e o Museu de Arte do Rio, o MAR. Usei o wi-fi do MAR pra avisar minha mãe que cheguei. Sim, você se lembra corretamente: tenho 27 anos, não 17. A entrada do MAR tava muito cara, desisti. Resolvi refazer o trajeto que havia feito com meu amigo Victor Hugo semanas antes (três cartas, três menções ao Victor Hugo nesta newsletter; pode pedir música, VH). Peguei a orla da Marinha, que vai da Praça Mauá à Praça XV. Descobri nesse passeio que ela se chama Orla Conde, uma homenagem ao ex-prefeito Luiz Paulo Conde, falecido em 2015. A orla foi inaugurada em 2016, mas só fiquei sabendo da existência dela este ano. Talk about direito à cidade, right????
Logo no início da orla, ainda bem perto do Museu do Amanhã, reparei nuns degraus, que dão para o mar (o mar e o MAR. Uma observação perspicaz da minha amiga Marina. Mar-ina). Me recordei do que a Flora Thomson-Devaux disse, em um recente episódio do podcast Rádio Novelo Apresenta, sobre a ironia de terem construído um “Museu do Amanhã” no porto que recebeu o maior número de pessoas escravizadas em todo o mundo. Nada mais Brasil do que isso.
Uma emoção me tomou completamente. Chorei pensando na possibilidade de um dos meus antepassados ter desembarcado ali, após ter sido sequestrado em alguma parte do continente africano, que eu não sei qual é. Não sei se descendo dos bantus, dos iorubás, dos xhosas, dos malês. Ou de um grupo étnico que nem conheço. Em algum lugar da África, tem uma pessoa muito parecida comigo. Uma prima distante. E eu não sei. Não sei quais eram os nomes e sobrenomes dos meus tataratataravós.
Lembrei do fato de que meu bisavô, Heitor dos Santos, pai do meu avô paterno, trabalhava no Cais do Porto, no início do século XX. Não tenho certeza se isso aconteceu mesmo ou se foi uma fanfic que inventei quando criança, mas reza a lenda de que ele conheceu minha bisavó ali mesmo, quando ela desembarcou do navio que a trouxe de Portugal. Da cidade de Leiria, pra ser mais exata. Acho legal saber de onde veio pelo menos um dos meus ascendentes.
Vi uma tartaruga emergir à superfície da Baía de Guanabara pra respirar e senti muito amor pela tartaruga. Continuei observando o mar por um tempo, na esperança de que ela ressurgisse. E ressurgiu. E depois amigas dela. Quão raros e preciosos são esses momentos de total conexão consigo mesma e com a natureza. Não estava ouvindo música ou podcast. Estava completamente ali. Eu, meus ancestrais e a tartaruga. Foi lindo.
Aí questionei: será que eu tava mesmo completamente ali? Porque, durante toda a experiência, fiquei pensando no texto que escreveria depois sobre aquilo. Não consigo só apreciar algo, sem estar apegada ao registro? Aposto que a maioria das pessoas não fica pensando em palavras, períodos, aliterações e afins enquanto estão VIVENDO. Essas são as pessoas normais.
Mais à frente, na orla, parei no guarda-corpo e filmei o mar e os navios. Flagrei na câmera um grupo de adolescentes cantando “Blank Space”, da Taylor Swift. Naquele dia, tive um senso de comunidade com duas das minhas coisas favoritas no mundo: o Fluminense e a supracitada cantora. Andando mais um pouco, ouvi um jovem de uns 20 anos dizendo: “Esse sol tá gostosinho, dá até saudade da mulher.” Oh, to be young and horny. Havia passado menos de uma hora desde que tinha chegado ao Centro, então lembrei que, se eu voltasse pra casa naquele instante, com outra linha de ônibus, não pagaria a tarifa da volta no RioCard.
Como a boa protagonista que sou, chorei olhando pra janela do 350 (Passeio x Irajá). Chorei porque lembrei de quão próxima eu era do meu pai na infância e na adolescência. E do fato de que o Fluminense era esse grande elo entre nós. O futebol como um todo. Eu acompanhava o campeonato inglês, ele não, mas ele acabava acompanhando por tabela porque a gente morava na mesma casa. E ele me deu uma camisa do Manchester United quando eu tinha 15 anos. E como a gente não tem mais essa relação nos últimos 12 anos. E como isso tem tudo a ver com o meu posterior desinteresse pelo futebol e pelo Fluminense. E como eu gostaria que a gente voltasse a ter essa relação. E como sei que ele gostaria disso também.
Saltei no Largo do Bicão e fui andando até o Carioca Shopping. Precisava comprar meu antidepressivo, que havia acabado, e lá tem uma drogaria que pratica o menor preço na região. Disse no podcast que sou uma manic pixie dream girl que é manic de verdade. Porém doidinha para o meu próprio desenvolvimento de personagem. Chegando na drogaria, descobri que aquele era o último dia de validade da receita. Sorte. *emoji de brilhinho*
Como ainda tava cedo, fui visitar a loja do Fluminense. Olhei tudo e não comprei nada. Afinal, sou uma costureira, uma artesã, e faço minhas próprias camisas do Fluminense. (Tradução: je suis pauvre, pauvre, pauvre. Pauvre du Marais — pobre, sim. Porém francófona.) Aí voltei caminhando pra casa. Com a certeza de que, com apenas R$ 4,30, tive um dos melhores dias da minha vida.