‘Copo vazio’, ainda

E não encheu até hoje, sete meses após a leitura

Ana Carolina Santos
Caracoles

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Praia Seca, novembro/21

Faço parte do 0,5% de pessoas que não gostou de Copo vazio. Em agosto passado, gravei um podcast quando estava na 33ª página da obra escrita pela autora Natalia Timerman e publicada pela todavia em 2021. No episódio, tagarelo por quase 10 minutos sobre como aquela estava sendo uma leitura modorrenta e sobre tudo que eu achava que havia de errado com o romance.

Foram três meses para ler um livro de 140 páginas (apesar de a sensação ter sido de umas 450). E olha que eu fui MUITO ao médico naquele período, então não faltaram salas de espera. Assim que terminei, digitei rapidinho umas notas no Google Keep sobre a leitura. Para melhor compreensão desse texto, sugiro ouvir o rant de 9 minutos. Juro que minha voz não é feia. O sotaque carioca, contudo, é bastante assinalado.

Para começar, preciso dizer que aquele áudio não foi gravado com a intenção de virar um podcast. Era um áudio pra mim mesma, pra eu elaborar meus pensamentos e vocalizar meus incômodos. Falta muita contextualização naquele áudio. Contextualização sobre o livro e contextualização sobre de onde eu falo. E isso é crucial para entender parte das razões porque eu não gostei da leitura.

Contextualização

Copo Vazio fala sobre um relacionamento amoroso nascido no Tinder e que teve vida curta porque uma das partes aplicou um ghosting na outra. Essa prática, popular entre os Millennials e a Geração Z, consiste em picar a mula sem maiores explicações. Parar repentinamente de responder nas redes sociais, bloquear etc. Aplicar o wazari. É isso que Pedro, um mineiro louro, doutorando em… acho que letras, não lembro mais, faz com Mirela, uma arquiteta paulistana, moradora do Centro de São Paulo.

(Abri um PDF clandestino aqui — a minha cópia física tá em alguma pilha de livros— e o doutorado dele é em ciência política. O que não muda em absolutamente nada a história. Poderia ser moda, meteorologia, zootecnia. Pedro continuaria sendo o mesmo personagem sem cor.)

Lá no podcast eu já deixei claro meu repúdio por livros que têm como cenário o Centro de São Paulo. “A cidade como personagem” *revira os olhos*. Já foi feito, continua sendo feito e provavelmente continuará sendo feito enquanto existir literatura brasileira contemporânea e existir São Paulo.

E é aqui que eu preciso dar a outra parte da contextualização. A pessoa que vos fala mora a vida toda no subúrbio do Rio de Janeiro. Não odeio São Paulo. Tenho até amigos que são. Mas se eu tiver de ler mais um livro que se passa no Centro da capital paulista (ou na zona sul do Rio), eu vou morrer. Pelo amor dos deuses da literatura, escrevam sobre bairros não tão conhecidos do grande público. Nem precisa ser da periferia — já que, né, ojeriza a pobre (pode entrar, Caco Antibes). Pode ser num bairro que fica no meio do caminho. Eu só quero ler um endereço novo. Enjoei do nome Augusta. Espero nunca mais cruzar com uma Augusta na vida.

Desculpa, Dona Augusta (Foto: iStock)

Não se trata de inclusão. Não se trata de representatividade. Não creio que esses temas (embora indubitavelmente importantes e necessários) devam atravessar a liberdade da criação literária. Se um autor quer retratar as altas rodas das cidades, ele pode e deve. Eu mesma adoro ler sobre ricos. Não sou da turma que acha que toda literatura tem que ter relevância social. Existe, também, essa literatura. É para se comemorar que hoje sejam publicados mais autores negros, indígenas, periféricos, PCDs etc. que exploram suas vivências enquanto minorias em suas obras. Essa literatura tem seu lugar.

O meu ponto aqui é originalidade. Você quer ser mais um escritor branco sulista/sudestino que escreve sobre um escritor branco sulista/sudestino lidando com suas questões internas de escritor branco sulista/sudestino? Ou você quer ser um escritor branco sulista/sudestino que traz um refresco para as mentes cansadas dos poucos leitores que apreciam a literatura contemporânea nacional? Tá bom, eu deixo você escrever sobre um escritor branco sulista/sudestino. Mas promete que ele não vai morar na República? Nem na Farme de Amoedo?

[Daqui em diante, tem spoilers para dar e vender. Se você é uma das 14 pessoas que ainda não leram esse livro, quer ler (apesar dos meus avisos — brincadeirinha!!!11) e se importa com revelações da trama, receio que seja melhor parar por aqui. Até mais.]

Esvaziando o copo

Minha primeira nota no Keep não poderia deixar de ser geográfica. Aparece um endereço de um bairro periférico lá pelo meio/fim do livro. Mirela, sofrendo pela ausência do sumido, vê o anúncio de um cartomante daqueles que prometem trazer de volta seu amor em três dias. Num arroubo passional, decide pegar seu carrão e ir para a rua José Felipe Amaral. Dei um Google e descobri que essa rua fica no bairro de Jardim Nazareth, na zona leste da capital paulista, informação que não aparece no livro.

A coisa é tratada com tanto HORROR a pobre que deixa tudo pior do que já estava. Na primeira vez em que vemos populares na história, eles só estão lá para amedrontar nossa donzela em apuros. Eles se vestem mal. Eles são barrigudos. Eles são bêbados. Eles são rudes. Eles não são confiáveis. Eles querem roubar meu carro. Eles não me dão a direção para eu voltar à segurança do meu apartamento no Centro.

[…] Mirela perdida, longe de si, sem saber como seguir, sem saber como voltar, tenta não parar o carro, sente medo de estar sozinha na periferia de São Paulo, busca o histórico de caminhos do mapa, aperta rua José Felipe Amaral, o mapa pensa, pensa, pensa, e nada acontece, desculpe, algo inesperado aconteceu, sim, porra, algo inesperado aconteceu, senão eu não estaria aqui nessa porra deste fim de mundo […] (p. 101)

Bom. Fim de mundo depende do ponto de vista, né? Para quem mora em Itaquera, a rua José Felipe Amaral é logo ali. Para moradores de Paciência, Santa Cruz — o bairro onde termina a Av. Brasil (a via, não a novela)— está ao lado. Agora, a Barra da Tijuca… bem, a Barra é o fim do mundo mesmo. Até para os bairros vizinhos.

Como pode-se observar no excerto, o texto tem uma abundância de vírgulas e uma escassez de pontos finais. Sim, é uma escolha estilística. Não quer dizer que seja uma escolha estilística acertada. Faz-se isso para acentuar o estado de ansiedade da personagem. Eu entendo. Mas é irritante e cansativo. Por favor, me deixa respirar. Eu tô tentando ler aqui, não passando por um interrogatório no Ministério da Verdade.

Não lembro se cheguei a comentar no podcast (ainda que ache minha voz agradável e minhas ideias interessantes, não estou com vontade de ouvi-lo), mas o livro dá saltos temporais ao longo das páginas. Começa com a Mirela já com seus 40 e poucos anos e sendo mãe de uma menina. Depois vai para o período em que ela conheceu o Pedro. Aí volta pra maturidade da Mirela e por aí vai. Do meu ponto de vista, esse vai-e-vem não favoreceu o romance.

Acredito que a linearidade teria ajudado. Talvez ela pudesse ter permitido que eu formasse um laço com a protagonista, me compadecido de sua história (quem nunca tomou um ghosting que atire o primeiro smartphone). Se eu tivesse acompanhado de forma mais definida, mais ritmada, o desenvolvimento desse enlace, teria sofrido junto com Mirela pelo sumiço da razão de seu afeto.

Para além do problema de estrutura, Mirela é essa página branca (no pun intended), insossa, sem rosto. Em palavras menos gentis, Mirela é meio chata. A não ser que a proposta do livro seja o oposto, protagonistas são criados para que a gente goste deles, torça para que eles fiquem com seus interesses amorosos, derrotem o Voldemort etc. Olha, eu queria torcer pela Mirela. Mirela c’est moi. Mirela é todas nós. Exceto que não. Falta um je ne sais quoi. Um cominho, uma pimenta do reino.

Não existe um personagem cativante que seja. Não dá para torcer pela Mirela, porque, além de ela ser aborrecida, eu nunca comprei essa paixão avassaladora que ela sentiu pelo Pedro. De onde veio isso? O que ele tem de tão apaixonante? É só o fato de ele ser louro, alto e ter olhos azuis? Ela até admite em algum ponto que ele não tem muito ritmo quando fica por cima no sexo. Não entendi o apelo. Juro por Deus, esse homem não fala uma frase bem pensada o livro todo.

Na minha cabeça, o Pedro é esse louro de algum episódio de ‘Black Mirror’: mó água de salsicha

Acho que faltou uma melhor amiga. Uma interlocutora. Tudo ficou muito na cabeça na Mirela, e a cabeça da Mirela não é um lugar agradável de se estar. Podia até ser o clichê da melhor amiga negra. Eu aceito. Uma assistente no escritório de arquitetura. Uma empregada doméstica enxerida à moda Manoel Carlos. Bom, até existe uma interlocutora. A irmã dela, Marieta. Mas não me lembro de nenhuma conversa substancial entre as duas. Ah, e tem uma amiga chamada Julia que nunca fala nada, só aparece em sonho. Fiquei esperando essa trama da Julia ser desenvolvida. Não foi.

Lá pelo final, rola um misteriozinho acerca da paternidade da filha da Mirela. Por um momento, a gente até pensa que a menina saiu do escroto do Pedro. Honestamente, se eu já estava revirando os olhos, nessa hora minhas órbitas giraram 360°. O que é isso? Uma novela? Com o máximo respeito às novelas. Das novelas, a gente espera mistérios desse calibre. Quem matou Lineu? O Marcelinho vai ficar com a Helena ou com a Eduarda?

Depois fica bem evidente que o pai é o Rui. Quem é o Rui? Não sei, um cara aí que corteja a Mirela. Gostaria de ter visto o desenvolvimento dessa relação. Como ela supera o Pedro e se abre para outra pessoa. Como foi esse processo. Como chegou-se ao casamento. Como geraram essa filha.

Para não dizer que não falei das flores

Todas as reações e cadeias de pensamentos de Mirela são verossímeis e condizentes com o que uma pessoa que levou ghosting sente. Como quando ela percebe outros caras se interessando por ela e pensa “porra, se eu sou tão bonita, tão inteligente, tão gostável quanto dizem, por que o Pedro não gosta de mim?” Transar com caras mesmo sem ter vontade, só pra se sentir desejada; ter uma esperança “imbecil, inútil, quase uma certeza” de que vocês vão voltar; sentir vergonha de ficar só falando do fantasma, semana após semana, na terapia… Been there, done that.

Folheando o livro (tirei-o da enorme pilha não com pouca dificuldade), encontro alguns momentos de inspiração. E outros não tão inspirados assim, mas quero terminar esse texto numa nota positiva:

Ele era quase sempre bonito. Às vezes parecia muito cansado, muito distante, ou os dois. Nessas horas, ela o olhava procurando a beleza que emanava dele e não encontrava, e a atração que continuava sentindo era mais uma memória, quase um hábito. (p. 38)

[…] a mão dela na barriga dele, o umbigo, os ossos de seu quadril, a
magreza de Pedro, o ventre vazio de todo homem se movendo com a respiração mais intensa, os pelos do púbis, as veias abertas, Pedro suspira, o pau mais duro com a proximidade da mão suave de Mirela, a mão quente, decidida (p. 61)

Beijou-a na boca, um beijo sem prolongamentos, comum, mas doce. O querer que durasse mais como que tornava o beijo dela maior que o dele. (p. 63)

A gente trepava horas a fio, ele me lambia da cabeça aos pés e eu me molhava e salivava a ponto de babar, sabe? […] daquelas que tiram a gente do espaço-tempo, eu me esquecia de quem eu era, e depois uma sensação de paz, de completude, e não essa sensação estúpida de vazio. (p. 80)

A partir da página 92, tem um diálogo via WhatsApp que é ouro:

00:15
Pe
Posso te pedir uma coisa?

00:15
Diga

00:15
Nem que seja quando a gente for velhinho
Me leva no cinema um dia?

[…]

00:24
Te beijar, te lamber pedaço a pedaço

00:25
Que delícia.
Muita saudade disso.

00:26
Te sentir quente
Te sentir todo
Te engolir

00:26
Se você visse o que faz comigo.

00:27
Manda uma foto

00:27
00:28
Manda sua também?
00:29
Mi?

00:31
Não posso com isso, Pe
Muitos beijos
Muitos
Boa noite

00:32
Beijos em você também.
Onde você quiser.

Deitada, o quarto escuro iluminado apenas pelo brilho do celular,
ela chora diante da fotografia do pau de Pedro. [Quem nunca?]

Para encerrar, uma metáfora muito, muito feliz:

Caminhando até a cozinha, pensa que talvez tenham, ela e Pedro, vivido apenas um começo, estado apenas numa antessala de relacionamento onde Mirela sozinha se esparramou acreditando ser a casa inteira. (p. 121)

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Ana Carolina Santos
Caracoles

Leitora e escrevedora de transporte público. Faço o podcast Caracoles: https://linktr.ee/santosacarolina