Cruzar a cidade em um ônibus de linha
A gente sente falta das coisas mais inusitadas
Antes da pandemia, eu era quase uma habitante nativa dos ônibus municipais do Rio de Janeiro. Pegava cinco deles por dia. Pisava em três zonas da cidade. Perdia quatro horas e meia diárias no trânsito. Era um inferno. Mas também era o paraíso.
Eu usava essas quatro horas e meia diárias para ler e escrever. Tanto que minha bio no Medium era e continua sendo “Leitora e escrevedora de transporte público”. Eu só lia tanto e escrevia tanto porque passava tanto tempo em coletivos.
Perdi a conta das crônicas e poemas que escrevi inspirados por viagens de ônibus ou metrô. Estava conversando ontem sobre isso com uma amiga. Uma boa maneira de forjar a inspiração é pegar um ônibus e cruzar a cidade. Observar o caminho. Ouvir conversa alheia. Puxar papo com um desconhecido.
Na semana passada, peguei o 483 (Penha x General Osório) pela primeira vez em… sei lá, quase três anos. Certamente desde antes da pandemia. Fui para Copacabana levar uns livros que havia vendido pela internet — fazia mais sentido financeiramente pegar um ônibus e ir levá-los para a nova dona do que enviá-los pelo correio.
Enquanto estava sentada, observando a paisagem e ouvindo Taylor Swift (claro), eu pensava o quanto isso me fez falta em todos esses meses circunscrita à minha casa ou ao meu bairro. Bastava o ato de pegar um ônibus e ficar um bom tempo nele, até chegar ao longínquo destino.
Lembrei que cheguei a pegar o 497 (Penha x Laranjeiras) no meio da pandemia, janeiro/fevereiro de 2021. Fui algumas vezes à casa de um amigo no Bairro de Fátima, no Centro. Estava muito mal. Não conseguia ler ou ouvir música.
Minto. Só conseguia ouvir duas músicas: Zumbi, do Jorge Ben Jor, e evermore, da Taylor com o Bon Iver. Zumbi, porque era a única coisa que me fazia sentir alguma coisa remotamente próxima de alegria. E evermore, porque me permitia chafurdar na miséria.
O 483 e o 497 fazem o mesmo itinerário da Penha até a Rodoviária Novo Rio, no Santo Cristo, região central. Enquanto eu habitava o 483 na semana passada, lembrava do meu eu que habitou o 497 mais de um ano atrás. De onde saímos e onde chegamos. Não que eu esteja ótima. Mas pelo menos não acho que minha dor existirá for evermore.