Esse cabelo (e esse corpo)

Uma reflexão sobre padrões e auto-ódio

Ana Carolina Santos
3 min readJul 28, 2021

Esses dias fui buscar a 2ª (ou 5ª) via da identidade, quase dois anos após ela ter sido furtada junto com minha mochila (e celular. E chinelo) numa fatídica choppada da faculdade. Saí na foto com um semblante meio tristonho, não gostei. Eu tava feliz naquele dia. Aí lembrei da minha primeira identidade, feita lá em 2010, aos 14 anos. No auge da minha teenage angst, estou com uma cara sutilmente invocada, como quem diz: “I dare you”. Não havia um dia em que não estivesse de lápis de olhos — demorou muito pra que eu me reconhecesse sem ele.

E o cabelo. Ah, o cabelo. Batia ponto religiosamente no salão pra retocar a raiz. Passava chapinha todo santo dia antes de ir pra escola. Isso tomou grande parte da minha adolescência. Até que entre os 14 e os 15 anos cheguei à conclusão de que não queria mais gastar o dinheiro que meus pais me davam com cabelo. Queria comprar livros, CDs e ingressos de shows. Queria ir pra São Paulo ver as bandas internacionais de que gostava e que não vinham pro Rio. E foi isso que eu fiz. A minha transição capilar começou em 2011 porque eu queria poupar dinheiro (risos).

Na minha última sessão de terapia, tive uma epifania. Daquelas que a gente só tem na terapia ou na análise. Falei ao meu terapeuta: “Não me permitiram ser eu mesma fisicamente.” Eu nunca havia proferido tal frase. Nunca havia enxergado com tanta clareza as minhas experiências infantis e adolescentes. Fiz relaxamento no cabelo desde muito pouca idade. Tipo uns 3 ou 4 anos. Lembro da embalagem do produto do pagodeiro Netinho de Paula (“Tô chegando na Cohab / pra curtir minha galera”). Era todo colorido, bem apelativo pra crianças mesmo. Havia uma menina negra no invólucro. Achava que ela era a filha do Netinho. Talvez fosse mesmo.

Desde que eu me entendo por gente, ouço que tenho que emagrecer. Como se meu estado fosse de buscar sempre o momento em que finalmente vou estar magra. Eu nunca ~estou. Eu sempre ~~estarei~. Futuro, futuro, futuro. Eu nasci gorda. Fui um bebê gordo. Uma criança gorda. Uma adolescente gorda. E sou uma adulta gorda. Nasci com cabelo cacheado. O padrão social não me permitiu ser eu mesma fisicamente. Gorda e cacheada. Por dentro, sempre fui celebrada. Elogiavam meu intelecto, minhas boas maneiras, minha bondade. Por fora, era: “Daqui a uns anos você vai crescer, vai espichar e vai emagrecer naturalmente.” Não cresci, não espichei, não emagreci. Parei de crescer aos 12 anos, com 1,60 m, altura que conservo e que vai me acompanhar até eu encolher na velhice (espero chegar lá). Era: “Faz o cabelo que o casamento de Fulana/a formatura de Sicrano/o Natal (aniversário de Jesus, que não é Beltrano) tá chegando.” De jeito nenhum culpo minha família por isso (embora critique muito meu pai no divã). Eles apenas fizeram o que o meio os ensinou.

Eles também se odeiam. Todos nós nos odiamos. Mulheres, pretos, indígenas, LGBTQIAP+s, pessoas com deficiência. Nós nos odiamos até aprendermos que não precisamos ser da forma que o padrão nos orienta a ser. Podemos usar nosso cabelo natural. Podemos aceitar nosso corpo como ele nasceu. Podemos ter tesão em quem temos tesão. Podemos não fazer a unha. Podemos não raspar os pelos. É nossa escolha. Em 2013 completei a transição capilar. E desde então uso meu cabelo como ele nasceu. Nunca fui tão eu mesma.

[Esse seria um ótimo encerramento pra esse texto, que gesto há muitos e muitos anos, mas as coisas não são tão simples. Ainda me odeio no plano inconsciente. Não me sinto merecedora das coisas boas que acontecem na minha vida. Ainda olho para o meu corpo com olhos pouco generosos às vezes. Ainda sonho que estou com cabelo liso. Só comecei a postar selfies no Instagram uns três anos atrás. Serão muitos e muitos anos de terapia e autorreflexão e autoconhecimento pra que eu tenha uma autoestima mais saudável. O racismo, o machismo e a homofobia nos atravessam de forma indelével.]

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