Há dois livros em ‘A pediatra’: um é bom; o outro, nem tanto
Os primeiros 50% da obra são quase perfeitos
“A s cesáreas foram tranquilas, na primeira ocorreu pré-eclâmpsia”, comenta dra. Cecília a certa altura do romance A Pediatra (Companhia das Letras, 2021). A obra da paulistana Andréa Del Fuego é cheia desses momentos de sarcasmo. Pequenas crueldades que, de tão absurdas, dão a volta e ficam engraçadas. E é um humor involuntário (da parte da personagem. A autora sabe muito bem o que faz. E faz bem). A estoica pediatra acredita piamente no que pensa.
Cecília Tomé Vilela é uma médica que mora em Pinheiros, bairro nobre de São Paulo, e atende no Itaim Bibi (fom-fom), bairro ainda mais nobre da capital paulista. É rica de berço e continuou rica através da profissão. Seu pai, também pediatra, mas especializado em endocrinologia, lhe presenteou com o apartamento onde ela mora, dentre outras facilidades.
Uma das melhores qualidades de A Pediatra é a autoconsciência. Cecília é consciente de si, de quem é e do lugar que ocupa. Mas não no sentido da culpa burguesa. Não é consciência social. É consciência de sua qualidade de madame e estar em paz com isso. É justamente não se importar. E isso é uma das coisas que mais deixa a personagem rica (em todos os sentidos).
Pode parecer um contrassenso, mas a questão de classe é muito bem representada. Cecília tem uma empregada doméstica, Deise, que mora no quartinho de empregada. Ambas têm seus lugares muito bem definidos. Cecília não tem um pingo de remorso ao explorar Deise, que está grávida. Quando a funcionária precisa ir para o interior cuidar da mãe doente, Cecília simplesmente pergunta qual é a previsão de retorno para São Paulo.
Cecília insulta, direta ou indiretamente, enfermeiras, advogadas, grávidas, mães, babás, idosos, deprimidos, seguranças de pizzaria… Ela é uma daquelas personagens memoráveis, de personalidade fascinante. Meticulosamente construída, fica evidente o trabalho e o talento da autora em sua elaboração. Descrevendo a trama em poucas (e rasas) palavras, Cecília é uma pediatra que detesta crianças.
Ela não hesita em assumir que só quis ser médica por causa da família (além do pai na área da saúde, a mãe é enfermeira, o que faz com que Cecília não a respeite). “[…] estudei medicina desapaixonada, com o pai no leme. Não é diferente de quem cuida de vacas porque de sua janela era o que havia, festejando o fato de que não era mais preciso caçar, apenas manter o gado.”
Considera-se competente, apesar de não ter identificação com a área. Mais de uma vez afirma: “quem trata não sou eu, é o protocolo”. As partes do livro que abordam a medicina são muito bem explicadas, acessíveis, mas ainda conservam aquele mistério sedutor de uma área que você não domina. As escolhas de vocabulário de Cecília, por ser médica, são inusuais e cativantes: ela diz inapetente em vez de sem apetite; nulípara em vez de mulher sem filhos; parturientes em vez de mulheres em trabalho de parto.
A doutora tem um amante chamado Celso, que é casado. Ao contrário dela, Celso é essa pessoa nula, apagada, desinteressante. Por isso, Cecília parece não se importar muito com o sujeito. No entanto, a construção das personagens é tão bem feita que até Celso, em toda a sua qualidade insossa proposital, tem cor, corpo. Todas as personagens, de todos os tamanhos, são vivas, tangíveis, têm passado e presente.
No começo, os capítulos são curtos. A leitura é mais do que ágil. Depois, a autora tem a certeza de que já fisgou o leitor e opta por capítulos mais longos. Embora não goste de excesso de vírgulas e falta de pontos finais, a escrita e estrutura narrativa de Del Fuego são magistrais. Neste livro, o uso excessivo das vírgulas não exprime ansiedade ou afobação. Denota raciocínio rápido, inteligência. É a vida acontecendo depressa, porque Cecília é dinâmica, sagaz.
Enxergamos, a princípio, Cecília como essa pessoa prática, cerebral, científica, pé no chão, que faz o que tem que ser feito. Mas aos poucos vamos percebendo um aspecto ilusório de sua personalidade. Ela se deixa levar por devaneios, imagina as vidas das pessoas ao seu redor: “[…] antes de voltar se beijam preparando o banquete que vão desfrutar, os dois entram na pizzaria pelos fundos. Dona Cecília, tá ouvindo? Telefone.”
A primeira metade do livro é fulminante. É bem na marca dos 50% de leitura (li pelo Kindle e pelo app do Kindle no celular) que o bolo desanda. A trama faz uma virada inesperada e tudo muda. Pra pior. Senti-me quase traída por esse rumo tomado (Cecília, você prometeu!!!1). Preciso falar sobre esse plot twist e sobre sua resolução. A seguir, há spoilers.
O acontecimento
O caráter delirante de Cecília é exponenciado quando ela conhece Bruninho, o filho de Celso. Cecília reencontra o menino cerca de dois anos após ter participado de seu parto como neonatologista. Um laço instantâneo nasce da parte dela para com o garoto.
E aí está o problema. Foi uma mudança muito brusca. Cecília passa de bruaca que odeia crianças a pseudo-mãe do filho de seu amante. Um amante do qual ela nem gostava tanto assim, pra começo de conversa. Não consegui acreditar nesse vínculo de geração espontânea.
Antes disso, nunca havia ficado claro que ela tivesse um sentimento mais significativo por Celso. E essa conexão com Bruninho é coisa de gente que ama. Quem ama a pessoa, ama a prole da pessoa. “[…] uma mulher que detesta criança foi ter carinho por seu filho, sinal de que eu estava amarrada até com sua continuidade”, ela reconhece. Mas e a construção de tamanho envolvimento com Celso? Não houve.
O final do livro é previsível. E ser previsível não é um problema em si. O problema é ser incongruente com a personalidade previamente estabelecida da protagonista. Tomada por um amor (?) materno, Cecília rapta Bruninho e o leva consigo para o litoral de São Paulo.
Ela não é descompensada assim. Ela é racional. Pelo que a gente conhece de Cecília ao longo do livro, ela jamais agiria dessa maneira, sem pensar nas consequências. Ela tem apartamento e consultório próprios, pai que banca, emprego bom. Apego material. Não abriria mão de tudo por uma criança.
Se a intenção dela era mesmo ficar perto de Bruninho a qualquer custo, a Cecília que eu conheci bolaria um plano. E o plano funcionaria. Ela arranjaria um jeito de tirar Camila, a esposa de Celso, de cena e o tomaria como esposo. Passou até pela minha cabeça ela sabotar o parto do filho que Camila estava esperando, provocar a morte dela e sair impune.
Ou até mesmo num golpe de sorte a la Humbert Humbert, Camila morrer naturalmente, sem a participação dela. Havia tantos caminhos. Cecília poderia se desencantar de Bruninho e Celso e focar no filho de Deise e em Robson, pai da criança e por quem Cecília nutre algum interesse sexual. Ela poderia “comprar” o filho de Deise. Até isso faria sentido. Não o sequestro destrambelhado de um menino cuja família tem recursos financeiros.
Se me permitem um pitaco acerca do projeto gráfico, a capa poderia ser melhor. Sempre torço o nariz para fotografias de pessoas em capas de livros. Esse é o papel do leitor: imaginar a aparência das personagens. E capas assim podem afetar negativamente a experiência de uma parcela da audiência.
Excertos
Não faltam trechos iluminados em A pediatra. Seguem alguns (como li pelo Kindle, não sei em quais páginas da versão física eles aparecem):
“[…] seio que criança nenhuma pisoteou até murchar, vagina nulípara, nunca posta à prova, músculo rosa, mucosa vítrea como a maçã de quermesse, eu permanecia inédita.”
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“Não fica brava, por isso insisto na viagem que até agora você enrolou e não fomos. Segundo ele, seria um seguro parque temático amoroso, nós dois andando de mãos dadas na calçada de algum vilarejo, sem hora para amanhecer, transando como se cada um fosse embora, fingir despedida. Eu não corria risco algum, eu podia lhe dar a mão na Fradique Coutinho, ele não, estávamos em filmes diferentes.”
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“Deise cortou uma pequena fatia de bolo e entregou ao Bruninho. Para quem o nenê vai dar? Bruninho não entendeu a pergunta e entregou ao pai, claro, o pai colado, fazendo pressão.” (O humor 🗣🗣🗣)