I ain’t no Maria
--
Fiquei quente o dia todo. E, infelizmente, de uma forma não sexual. Sentia minha orelha queimando, pulsando. Meu corpo todo tremendo. Não tinha controle sobre minha voz. Meu ânimo decaiu. Não queria estar naquele espaço. Aquele espaço em que sabia que a qualquer momento você passaria reto por mim. Direto. Nem um único olhar. E eu não saberia lidar. O que faria? Manteria a feição impassível? Sou capaz de tal façanha? Murmuraria meu texto em andamento? Fingiria foco total no trabalho? Estou certa de que meu rosto denunciava meu estado de espírito. Maquiagem alguma (sabia que eu só comprei maquiagem pra te impressionar? Sabia que eu vibrei nos dois dias em que você reparou que eu havia me maquiado?). A palidez saltava aos olhos. Meus olhos, já naturalmente diminutos, estavam menores ainda por causa da (1) noite mal dormida, (2) sua hostilidade para comigo. Será que errei ao usar essa expressão? Fui pedante? Mas, em contrapartida, essa sou eu. Comunico-me assim. (Atento para a gramática assim — não se inicia frase com pronome oblíquo.) Se me quiser, vai ter de me aceitar assim. Sim, sim.
Mas por que essa mudança de atitude? Por quê? Que lhe fiz? Inúmeras hipóteses povoam minha mente, uma mais descabida que a outra. Será que ouviu quando disse para aquele homem detestável que eu não gosto de homens mais velhos? Pois saiba que eu falaria qualquer coisa para que aquele boçal me deixasse em paz. Eu o desprezo com todo o meu ser. Ou será que isso tudo ainda tem a ver com o incidente com a garçonete-gata-do-restaurante-ao-lado? Pensa que sou lésbica? Mas pouco depois daquele fatídico dia você ainda continuou a brincar, mexer, cutucar, elogiar, flertar. O que mudou desde então? O quê? Por quê? Ontem você finalmente me dirigiu a palavra, mas parecia que o fazia a contragosto e com uma dor feroz. Depois fui até você, toquei em seu ombro e você nem me dirigiu o olhar. Me chamou de Maria! (Olha eu jogando a gramática pras cucuias.) Pfff… Maria! Não olho, hm, hm. Não sou Maria. I ain’t no Maria. Maria é minha avó. Sou Malu. Sua Malu. Só olhei quando chamou por Malu. E de novo foi indiferente; autoritário, ouso dizer.
Pensar que ontem à noite eu fiquei quente ao chegar ao ápice pensando em você. Hoje fiquei quente de nervoso, antecipação, medo, falta, agonia. Ah, todas as fantasias que eu criei… Eu chegaria cedo, você estaria sozinho no escritório. Eu iria de mansinho até você. Sentaria na cadeira ao lado. “O que está acontecendo?”, eu indagaria. (Nada de hostilidade para comigo.) Você se faria de desentendido (vê? Conheço-te, sabia que seria assim. Impressão sua. Tá bom). Eu sugeriria que fôssemos conversar num lugar com mais privacidade. Rua das Marrecas ou Lojas Americanas do Passeio. Optaríamos pela Americana; afinal, qualquer um poderia nos ver na rua (embora eu tenha imaginado nós dois nos pegando fortemente naquela via estreita e feia). Rumaríamos para a Americana. No meio do caminho, eu pediria para que você guardasse minha carteira no bolso, pois “tenho medo de ser assaltada”. Você o faria e eu acharia esse gesto encantador. Entraríamos na loja e iríamos direto para o fundo do lugar, onde estaria vazio. Apenas nós e os lençóis e edredons. (A sessão de cama, mesa e banho faria minha mente pensar coisas.) Conversaríamos. “Eu gosto, sim, de homens mais velhos. Gosto de um homem mais velho em especial. E não é o pulha que senta ao meu lado.”
Você me fitaria com seus olhos pidões de meninote púbere e nos beijaríamos languidamente. Como duas pessoas que querem muito aquilo e esperaram muito por aquilo. Eu sentiria sua barba roçar na minha pele e isso me faria sentir uma dor fina no baixo ventre. Você me puxaria para mais perto de si pela minha cintura e eu sentiria seu crescente volume. Sua mão direita iria até a lateral do meu pescoço, enquanto a outra continuaria a me abraçar pela cintura. E eu, naturalmente, não saberia o que fazer com minhas mãos. Após uma primeira hesitação, levaria-as à sua nuca e acariciaria a base de seus cabelos pretos e lisos. Correria meus dedos por ali. Apalparia seus ombros, depois voltaria para os cabelos. Em meio ao torpor, você me prensaria contra os edredons embalados em plástico, então nos daríamos conta de que estamos em público. Nos afastaríamos, envergonhados, e daríamos de cara com uma idosa bem magra, de cabelos bem brancos e de rosto bem antipático — a típica idosa que nasceu em Ipanema e vai morrer na Glória.
Zarparíamos daquele lugar, nosso ninho de amor original, abraçados e rindo. Você teria resquícios do meu batom na sua boca. Eu acharia graça desse fato e por dentro estaria me deleitando. Limparia os resíduos, aproveitando para acariciar seu lábio inferior e o canto de sua boca. Nos olharíamos intensamente de novo, quase nos beijaríamos, mas novamente nos lembraríamos que estamos em público, então nos recomporíamos e regressaríamos ao escritório. Você ainda com minha carteira no bolso. Eu o lembraria deste fato, faria um gracejo e rumaria para minha mesa. Passaria o resto do dia com o coraçãozinho acalentado. Você passaria por mim de tempos em tempos e nós nos regozijaríamos com nosso segredo, nosso momento na Americana. (Ian McEwan escreveu sobre um belo momento na biblioteca em “Reparação”; eu escrevo sobre um momento nas Lojas Americanas. Okay.) Marcaríamos de nos encontrar na estação da Cinelândia depois que você saísse do trabalho (eu não hesitaria em esperar horas por você, apenas eu e meu livrinho). Aí, sim. Nos beijaríamos sem medo e sem peso na estação. Sempre fantasiei sobre beijos em estações de metrô. Iríamos para sua casa — na minha cabeça, você mora sozinho (por favor, more sozinho) — , e foderíamos com força. Duas vezes. Então dormiríamos o sono dos satisfeitos. Muito diferente do sono que estou indo dormir agora: inquieto, torturante, intranquilo. Esse sono que só se restabelecerá quando ouvir sua respiração serena perto.
Escrito em 30 de setembro de 2016.