Kendrick Lamar e recomeços

Ou ‘Um brinde ao futuro’

Ana Carolina Santos
5 min readJul 16, 2017

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Hoje, 15 de julho de 2017, foi um dia daqueles™. Na volta pra casa, sentei na janela. Abri-a pra sentir o vento me esbofetear a cara. Eu tava cansada demais, com as pálpebras pesadas e com dor de cabeça (herança de umas cervejas em Botafogo ontem à noite), então não peguei o Kindle para ler “Orgulho e Preconceito”, um dos livros que mais me faz feliz — essa é minha terceira releitura. Então eu só fiquei ouvindo música no 497, eu e minha miséria.
Começou a tocar uma música alegrinha dos Beatles. Acho que era “I’m happy just to dance with you”. Eu não tava na vibe. Saquei o celular da mochila pra trocar de música. Queria ouvir algo mais pesado, mais raivoso. Em momentos assim eu gosto de ouvir Kendrick Lamar. Cliquei no álbum “To Pimp a Butterfly” e quando meu dedo se encaminhava para “The Blacker the Berry”, minha música raivosa favorita, o celular me foi tomado da mão. A força foi tamanha que arrebentou o fone.
Eu só fiquei lá, paralisada. A primeira coisa que fiz foi repassar na minha cabeça o que de importante tinha no celular e o que eu perderia — minha lua em virgem agindo. Pensei nos aplicativos na ordem em que eles estavam: Gmail, Bradesco, Banco do Brasil, Nubank. E não lembrava mais.
Pensei nas fotos. Acho que o Google fez back up, não tenho certeza. Pensei nos prints dos poemas com os quais trombei pelos Instagrams e Facebooks da vida. Fiquei aliviada ao lembrar que havia migrado todas as minhas listas do bloco de notas para o Keep, do Google, então todas as anotações estão seguras. Fiz essa mudança há alguns meses justamente pensando que seria uma potencial vítima da violência urbana. Afinal, tenho 21 anos de idade, vivi todos esses 21 anos na cidade do Rio de Janeiro, e nunca havia sido assaltada. Sabia que minha hora estava para chegar. Felizmente foi com um golpe rápido e certeiro, e não com uma arma apontada para a minha cabeça.
Depois pensei nas músicas, no Kendrick. Aí lembrei que tenho todas as canções no PC, bem seguras na minha casa. Enquanto todos esses pensamentos passavam frenéticos pela minha cabeça, a mulher sentada atrás de mim tentava entabular conversa. Não pode ficar com a janela aberta. Dá uma raiva dessas pragas. Tinha que pegar e matar tudo. Ela foi da Cidade Nova até a rodoviária tentando conversar comigo, mas eu só queria ser deixada em paz, na minha mônada.
Senti falta das músicas, do Kendrick. O que eu fazia nos deslocamentos antes da popularização dos mp3 players?, eu me perguntei. A resposta veio fácil. Eu era criança. Só me deslocava basicamente a pé, pelo meu bairro. No máximo pegava um ônibus pra casa da minha vó, que é perto. Além disso, por ser criança, eu nunca estava sozinha. Sempre tinha um dos meus pais ou ambos junto de mim, pra me entreter. Lembrei que foi só aos 11 anos, na 5ª série, que passei a estudar um pouquinho mais longe da minha casa. Eu ia andando pra escola, no Largo do Bicão, escutando a Rádio Mix no meu mp3. Saudoso 2007. Todos esses pensamentos me engolfavam e eu só queria ter onde escrever. Eu não tinha papel nem caneta. Aí senti falta do celular. Do bloco de notas, do Keep, do rascunho do Gmail, do aplicativo do Medium.
Eu queria sair o mais rápido possível daquele ônibus. A presença daquela mulher às minhas costa me assombrava. Pensei em descer na Brasil e pegar o 350, mas não quis dar outra chance ao azar — afinal o Kindle estava na mochila.
Enquanto torcia para o ônibus chegar logo ao destino, pensei no meu querido número. Gosto tanto dele. Tem um monte de seis. Foi tão fácil decorá-lo. Possuía-o há 7 anos. Foi durante a Copa de 2010 que meu pai comprou um Samsung Corby rosa pra mim (lembram-se desse celular? Tava na moda naquela época). Eu tava tão feliz aquele dia. Tava com a minha blusa do Brasil que tenho desde o Penta, em 2002. Naquele dia, minha mãe também ganhou um celular rosa. Fomos nós, duas peruas, ver o jogo do Brasil com a família, na casa da minha vó.
Quanto ao celular que acabara de perder, não lamentei tanto assim. Ele já tinha mais de dois anos de uso — também foi presente do papai, desta vez por ter passado no vestibular. Aquele Samsung Galaxy Gran Prime Duos não era lá muito bom. Sempre travou muito, reclamava o tempo todo de falta de espaço. Eu raramente conseguia atualizar algum app sem precisar desinstalar outro.
Claro que lamentei a perda material. Eu não preciso adicionar outra despesa à minha já larga fatura de cartão de crédito. Mas apesar de tudo, senti uma serenidade e renovação incríveis. Eu tô num momento muito único. Nunca planejei tanto. Nunca realizei tanto. Sou pisciana e vejo sinais em tudo. Entre Bonsucesso e Ramos, eu pensei que ter perdido meu celular foi um closure e um começo. Um wrap-up (perdoem as expressões anglófonas). Minha próxima grande compra seria uma câmera profissional ou semi para finalmente começar a fazer vídeos para meu canal literário no YouTube. Mas não poderei mais comprar a câmera. Lamentei por um momento, aí pensei: “hey, é só eu comprar um celular com uma câmera foda!”. E é isso que eu vou fazer — assim que o cartão virar (risos nervosos).
Estava tocando na minha cabeça “adeus, ano velho, feliz ano novo”, embora seja julho. Desci em um ponto deserto de Ramos porque queria ficar sozinha e estava me sentindo reckless (de novo, desculpem o anglocentrismo). Estava esperando qualquer uma das diversas linhas que posso pegar, mas veio justamente o 940, que me deixa mais perto de casa. Um 940 é sempre sinal de sorte pra mim, porque ele é bem raro, ainda mais num sábado à noite.
Dentro do 940, comi o brigadeiro que minha vó havia comprado pra mim mais cedo, na Penha — comfort food é uma coisa muito importante. Enquanto comia, vi a revista que reúne as melhores capas do Meia Hora — publicação que eu havia surrupiado na redação (acho que o Universo me puniu por esse ato de imoralidade). Dei umas risadas altas com as capas das Olimpíadas do Rio, justamente o período em que eu entrei no Meia Hora, há exatos 11 meses (foi o 15 de agosto de 2016, um dia feliz). Lembrei daquele agosto. A Lapa cheia de gente em qualquer dia da semana. Eu andando até o ponto final do 350 todos os dias, fascinada pelas cores, pelos ritmos, pelas pessoas. Eu não sabia que o 497 passava lá perto. Não tinha medo de andar até o Passeio. A cidade estava tão cheia, tão sorridente, tão verde e amarela.
Pensei no meu celular. Tá bom. Antes o celular do que o Kindle. Espero que o menino ouça Kendrick Lamar.

P.S.: Cheguei em casa sedenta pra escrever esse texto. O notebook tava descarregado, então escrevi num caderninho que comprei no início de 2015.1 para ser o sketchbook de uma disciplina do meu primeiro período da faculdade. Faltavam poucas páginas para ele acabar. Com esse texto, eu cobri essas páginas remanescentes. Hoje se foram meu celular e o caderninho, que me acompanham desde o início de 2015. Vejo sinais em tudo.

P.S. 2: Enquanto digitava esse texto, abri o iTunes e dei play no aleatório. Qual música veio? Isso mesmo, “The Blacker the Berry”. O Universo é uma coisa muito louca mesmo.

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