O desamparo dos supermercados desconhecidos
Rio de Janeiro, 02/05/2022
Quando fui escrever o segundo 2 de 2022, quase fiz um 1. Porque fiquei dez anos fazendo o 1 da década passada. Como quando mudou do 0 da década retrasada para o 1 — na escola, nós sempre escrevíamos 200 e, putz, não é mais 0, é 201X. E vai acontecer a mesma coisa quando for 2030, daqui a apenas oito anos.
Não consigo acreditar que 2014 foi há oito anos. Oito anos soa como muita coisa (“Fulanos estão juntos há oito anos”), mas não é. Meu eu de 18 anos não é muito diferente do atual. Vinte e seis parece muita coisa, mas não é. Me pergunto se aos 27 me sentirei melhor, menos imatura, maior (ou menos pequena).
Estou sozinha em casa, então é o momento perfeito pra chorar. Eu quase chorei no mercado. Cheguei a colocar óculos escuros em um ambiente fechado (o cúmulo do kitsch) pra poder chorar com alguma privacidade. O choro não veio. Mas a vontade estava lá por causa da frustração que sentia após uma corrida de Uber. A motorista fez um caminho inortodoxo, e eu quase temi estar sendo sequestrada.
Eu nunca vou ao Extra da Praça do Carmo. Ouso dizer que jamais fiz compras ali. Me pareceu uma boa ideia frequentá-lo hoje. Poucas coisas causam mais desamparo do que um supermercado que você não conhece. Você fica rodando, com aquela sensação labiríntica. Cadê o leite, eu já passei pelo leite, cadê ele? Onde tá o papel higiênico? E por que o papel toalha não tá perto do papel higiênico como em qualquer outro mercado?
Uma senhora me pergunta onde fica o adoçante. Eu não sei responder. Peço desculpas e lhe digo que não conheço bem aquele supermercado. Desisto de pegar o pão francês e a mortadela e vou para o caixa. Só há dois caixas abertos. Outra senhora me pergunta se eu sei onde ficam os palitos de dente. Novamente não sei responder. Como o caixa preferencial havia acabado de fechar, cedi meu lugar a ela.
Poucos minutos depois, uma terceira senhora puxa papo comigo. Comenta da escassez de caixas abertos. Ela só queria pagar uma conta. Quando chega a minha vez, cedo-a pra ela. Em seguida, uma senhora de cadeira de rodas pergunta se pode passar na minha frente. Respondo prontamente um “claro”.
Eu tava tão pra baixo, como há dias não ficava, e só queria sair o mais rápido possível dali. Mesmo assim não hesitei em ceder meu lugar três vezes. Foi automático. Não pensei. E isso não é uma exaltação das minhas virtudes (ceder lugar pra idosos é o mínimo do mínimo. We live in a society), é apenas uma constatação. Depois pensei: “putz, se aquela motorista não tivesse feito um caminho tão esquisito, eu já estaria há muito longe daqui”, o que comprova que não sou toda candura.
Resolvi ir embora a pé porque não queria lidar com outro motorista inventivo. Escolho o caminho de casa conforme a agradabilidade das ruas: se elas têm mais ou menos árvores, prédios antigos e charmosos ou novos e altos, casas de um andar com telhadinho marrom e por aí vai. Usando esse critério, escolhi pegar a Tomás Lopes. Quase chegando na esquina com a Tessália, testemunhei uma conversa entre dois homens, um no muro de casa e outro de pé ao lado do carro, com a porta do motorista aberta.
Eles ponderavam sobre qual seria o melhor horário para fazer coisa X, cuja natureza não pesquei. Dentre as vozes dos homens, surgiu uma terceira, bem aguda. “Papai. Papai. PAPAI!”, chamava. Havia uma garotinha dentro do carro de um dos interlocutores. Ela tinha entre 3 e 8 anos — não sou boa em determinar idades de crianças.
Geralmente os gritos da menina teriam me irritado, mas dessa vez fiquei do lado dela e não do pai. O homem não interrompeu a conversa para dar atenção à filha. Só entrou no carro e deu a partida quando o papo terminou naturalmente. O que me lembrou de uma situação que vivenciei quando pequena.
Nós não tínhamos carro. Fomos para a casa da minha avó, em Olaria, de ônibus. Descemos na Uranos e fomos andando até os conjuntos — uma caminhada de uns 20 minutos. Na Praça do Rato, meu pai encontrou uns amigos e ficou conversando com eles por muito e muito tempo.
O tempo é ainda mais relativo quando somos crianças. Não tínhamos relógios de pulso ou celulares. Tempo era só sensação. Talvez meu pai não tenha ficado mais do que 10 minutos na companhia dos “compadres”, mas pra mim pareceu muito mais. Eu já havia comunicado, antes da parada, que estava com sede. De tempos em tempos, relembrava-o do meu estado de secura. E ele sempre dizia “daqui a pouco a gente vai”.
Mas esse daqui a pouco nunca chegava. A minha sede só aumentava. Desde então, nunca senti uma sede tão forte quanto naquele dia. Nem após praticar esportes debaixo do sol. Nem durante um dia de verão na praia. Arrisco dizer que nem se eu pisasse em um deserto arábico sentiria tamanha sede. Tudo é maior quando somos crianças. Colinas são montanhas na nossa memória.
A casa da minha avó estava tão próxima dali. Eram uns três minutinhos andando. Pensei na possibilidade de ir sozinha, mas acreditava que meu pai não deixaria, então nem pedi. Não lembro minha idade, mas não devia ter mais do que 6 anos. Não tinha o costume de andar sozinha.
Pedi para o meu pai comprar água em um dos quiosques da praça, mas ele não o fez (“Tem água na casa da sua avó.”). Não sei se porque ele só tava com o dinheiro da passagem — a gente não tinha dinheiro pra nada naquela época — ou se não comprou porque não quis mesmo. No início dos anos 2000, uma garrafa d’água custava o quê? Uns 50 centavos, um real no máximo?
Como o pai da menininha dentro do carro, o meu só se despediu dos amigos quando a conversa acabou organicamente¹. Não lembro da sensação de chegar à casa da minha avó e finalmente beber água. Só lembro da sede.
“Estar ocupado é uma forma de ser barulhento. E o que minha filha precisava era de um espaço silencioso para sua voz ser ouvida.”
(John Green)
¹ Na verdade, não me lembro se a conversa do meu pai terminou organicamente ou se eu o venci pelo cansaço. Só escolhi a primeira opção pelo efeito dramático.