‘Palm Springs’: a dor do quase

Filme entrega menos do que poderia

Ana Carolina Santos
5 min readJun 13, 2022

O s anos 2010 e 2020 estão carentes de comédias românticas. Qual foi a última boa comédia romântica lançada? Só consigo pensar em (500) Dias Com Ela, que é de 2009. Frances Ha (2012) é legalzinho, mas não sei se se encaixa no gênero. Questão de Tempo (2013) ficou célebre por um tempo, porém tem o problema exatamente oposto ao de Palm Springs (2020): é longo demais. Suas duas horas de duração fariam bom uso de uma tesoura, especialmente no início do filme.

Curiosamente, Palm Springs também fala sobre o tempo. Se em Questão de Tempo, o protagonista Tim (interpretado pelo irlandês Domhnall Glesson) pode viajar ao passado, em Palm Springs, Nyles (vivido pelo comediante estadunidense Andy Samberg) fica preso no mesmo dia. Ele acorda e é dia 9 de novembro. Vai dormir, acorda e é 9 de novembro de novo.

Soa familiar? Pois é. Feitiço do Tempo (Groundhog Day no original) fez isso lá em 1993. Meu problema com Palm Springs nem é a falta de originalidade da premissa. Sou a favor de pegar uma história já contada e reimaginá-la com algum frescor. Meu problema com Palm Springs é o desperdício de uma boa história. E ele quase chega lá.

Nyles (Samberg) está em um destination wedding com a namorada (uma personagem bastante irritante, por sinal). Durante a festa, é solicitado a Sarah (Cristin Milioti, a mother da série How I Met Your Mother), irmã da noiva e madrinha, que faça um discurso. Um pouco lenta devido à quantidade de álcool ingerida ao longo da comemoração, ela hesita em aceitar a tarefa. É nessa hora que aparece Nyles, um ninguém na hierarquia da ocasião matrimonial, e rouba o microfone, fazendo um discurso surpreendentemente adequado e recebendo a gratidão eterna de Sarah.

É claro que eles acabam se pegando. Quando estão se preparando para consumar o ato, uma figura de trajes escuros e pouco iluminada começa a caçar Nyles, lançando flechas em sua direção. Nyles busca abrigo em uma caverna, e Sarah vai atrás. Ele diz para que ela não se aproxime da luz laranja que emana do fundo da caverna. Mas ela não segue o conselho. Resultado: os dois acordam no dia anterior, o dia do casamento da irmã de Sarah.

Encarnando Nyles, Andy Samberg é Jake Peralta, o carismático protagonista de Brooklyn Nine-Nine. Não há nada de errado nisso, uma vez que Peralta é bastante gostável. No entanto, seria interessante ver Samberg em um tom diferente ao qual estamos acostumados. Cristin Milioti é uma atriz segura, mas sua atuação não se destaca aqui.

Quando J. K. Simmons entra em cena, aí é que as coisas ficam desequilibradas mesmo. Simmons é essa apoteose de ator. Tudo que ele faz, menor que seja o papel, é uma explosão. Seja uma ponta no último Homem Aranha: Sem Volta Para Casa ou o professor infernal de Whiplash, pelo qual ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante em 2015.

Palm Springs tinha uma tarefa dificílima mesmo: igualar ou superar o fascínio que Feitiço do Tempo exerce até hoje sobre o público. Ao mesmo tempo, poderia conquistar aqueles que não têm a referência do sucesso dos anos 90. O filme de Max Barbakow não faz um nem outro. Falha em inovar e não executa o feijão com arroz com competência.

Um dos trunfos de Feitiço do Tempo é fazer com que o espectador fique louco de irritação com aquela música que desperta Phil (Bill Murray) todo santo dia. Até a presente data, anos e anos depois de tê-lo assistido, ainda tenho a melodia grudada na mente. Palm Springs nunca chega a causar tamanho efeito na plateia. Simplesmente porque nunca chegamos a ver retratada em tela a aporrinhação que é viver o mesmo dia milhares de vezes.

Sentimos um bocadinho disso com o personagem de Simmons, quando ele lamenta o fato de que nunca vai ver seus filhos crescerem. Contudo, essa função teria de ser de nossos protagonistas, Nyles e Sarah. Cristin Milioti até tenta, mas o roteiro não permite que ela faça muito além do que é apresentado. Por ter apenas uma hora e meia de duração, o longa não consegue desenvolver a trama de maneira satisfatória. Com cerca de 20 minutos a mais e uma lapidada no roteiro, talvez Palm Springs pudesse ter virado uns daqueles clássicos contemporâneos, adorados por uma legião de jovens.

[A partir daqui, o texto contém spoilers.]

Logo fica óbvio que Nyles já está nesse looping há muito, muito tempo. As melhores partes do filme são justamente ele contando a Sarah algumas das aventuras que teve (e pessoas que pegou) antes de ela entrar no looping junto com ele. Aliás, um ponto superpositivo da obra é a naturalização da bissexualidade de Nyles. Ele conta das relações sexuais que teve com homens sem fazer alarde do fato de eles serem homens. E nem Sarah reage com exagerada surpresa ou reprovação. Talvez seja a representação de bissexualidade mais orgânica que já vi no cinema.

Lá pela segunda metade da película, Nyles revela que já ficou várias vezes com Sarah ao longo do looping. Eu gostaria de ter visto um flashback que fosse de algumas dessas vezes, já que o filme gasta um tempo considerável rememorando outras experiências de Nyles. Gostaria de ter visto esse laço — pelo menos de uma das partes — ser construído.

O longa nunca revela como Jake, digo, Nyles entrou no looping. Será que uma noite, cambaleando bêbado pela praia, ele acabou na caverna e andou em direção à luz? É uma opção consciente do roteiro, mas pode incomodar espectadores curiosos e/ou detalhistas. Entretanto, ele revela como Roy (Simmons) é preso no looping, e essa é uma das melhores sequências da obra.

Diferentemente de Feitiço do Tempo, onde o protagonista vive o mesmo dia, no mesmo cenário, em Palm Springs, Sarah e Nyles decidem a cada dia fazer alguma coisa diferente. Esse dinamismo é divertido de se assistir e confere um ritmo legal ao longa. Tem uma cena de dança que poderia se tornar antológica, como as sequências de Pulp Fiction e de Ex Machina, caso o filme tivesse o calibre dessas produções.

Palm Springs funciona perfeitamente como uma daquelas películas inofensivas que você vê antes de dormir ou num dia tedioso. A dor é saber que o roteirista Andy Siara tinha em mãos uma história com potencial para ser mais do que isso. Às vezes, um filme mais ou menos, com capacidade de ser muito melhor, causa mais cólera do que uma obra indiscutivelmente incongruente.

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