Também é por nós

Às vezes, o futebol é justo

Ana Carolina Santos
8 min readNov 9, 2023

Texto originalmente publicado na minha newsletter, Posta-restante.

O que fazer quando a coisa que você mais deseja de fato acontece? É mais fácil lidar com a alegria ou com a dor? A dor é tão familiar, tão conhecida… A gente já sabia o que era lidar com a dor da perda de uma Libertadores em casa. A gente já sabia o que era se sentir injustiçado. O medo de o filme se repetir era palpável. Exalava dos corpos de cada um dos milhares de tricolores presentes no Maracanã no último sábado, 4 de novembro de 2023, data que nunca esqueceremos. Como nunca nos esquecemos do 2 de julho de 2008.

Medo e confiança. Essa dobradinha coexistiu por exatamente um mês, desde a histórica semifinal contra o Internacional, em 4 de outubro. Medo porque o time não vinha jogando o que sabe. Nem mesmo contra o Inter o fez. Passamos muito mais por uma ajuda do imponderável do que por qualquer outra coisa — embora a resiliência e o poder de reação da equipe precisem ser exaltados.

As últimas exibições do time titular (ou misto) no Campeonato Brasileiro também não foram precisamente tranquilizadoras. Na ressaca pós-classificação, perdemos por 2 x 0 do Botafogo, então líder isolado da competição. Okay, completamente compreensível. Os jogadores estavam esgotados física e mentalmente. Em seguida, enfrentamos o Corinthians em casa. Saímos perdendo por 3 x 1 no primeiro tempo e conseguimos empatar no segundo. Contra o Bragantino, lá, apresentamos um futebol deprimente. A derrota por 1 x 0 saiu barata.

O único “respiro” que a torcida tricolor experimentou às véspera da final foi o 5 x 3 em cima do Goiás, em Volta Redonda (RJ). Respiro entre aspas porque levamos 2 x 0 no começo do jogo. Empatamos antes do intervalo e abrimos 5 x 2, para então levarmos mais um gol. A defesa preocupava enormemente. Nosso zagueiro e capitão Nino havia se machucado num treino da Seleção Brasileira na última data Fifa e tinha menos de um mês para se recuperar. A possível ausência do xerife era um dos piores cenários possíveis para a grande decisão.

Com os reservas — ou o time “alternativo”, como prefere nosso técnico Fernando Diniz — , visitamos Atlético Mineiro e Bahia. Perdemos de 2 x 0 e de 1 x 0, respectivamente. O saldo era de quatro derrotas, um empate e uma vitória pós-data Fifa, o que fez com que despencássemos para a nona colocação. Caso não ganhássemos a final, a possibilidade de uma classificação à Libertadores 2024 via Brasileirão tornava-se cada vez mais distante.

Mas o medo convivia com a confiança. Confiança porque… Era nossa. Tinha que ser nossa. Tudo apontava para isso. Foi uma confluência de fatores. Um alinhamento cósmico muito específico nos levou até o dia 4 de novembro. A Libertadores 2023 não começou em 5 de abril de 2023, com a primeira rodada da fase de grupos — um 3 x 1 em cima do Sporting Cristal, lá em Lima, no Peru.

A Libertadores 2023 iniciou-se com outro 3 x 1. Este, em 21 de maio de 2008. Maracanã, quartas-de-final da Libertadores, Fluminense x São Paulo. O Tricolor Paulista havia ganho o jogo de ida, no Morumbi, por 1 x 0, gol de Adriano. O Flu vencia o jogo de volta por 2 x 1, resultado que classificava o São Paulo, pois, naquela época, gol fora de casa ainda era critério de desempate. Até que, aos 46 do segundo tempo, Thiago Neves cobra escanteio e Washington Coração Valente marca de cabeça. Êxtase. Estávamos na semifinal da Libertadores pela primeira vez em nossa história.

Todo mundo sabe como terminou aquela Libertadores. Como poderíamos esquecer? Há traumas que são recalcados pela psique. E há traumas que grudam na consciência como perfume barato no nariz. É incômodo, é desagradável. Dá dor de cabeça, enjoo, vertigem. Dois mil e oito foi uma jornada belíssima, que nos provocou emoções nunca antes sentidas, explosões de felicidade sem igual, mas que terminou com uma tristeza profunda e perene.

Esse grande trauma basilar nos mantinha com os pés nos chão e, ao mesmo tempo, nos dava a confiança de que, dessa vez, não deixaríamos a copa escapar. Era nossa. Tinha que ser nossa. Os deuses do futebol não permitiriam que o raio caísse duas vezes no mesmo lugar, com o mesmo time, com 15 anos de diferença. Os deuses do futebol não nos dariam aquela classificação contra o Inter, do jeito que foi, pra que perdêssemos a final.

Sobretudo, a confiança vinha da certeza de que éramos um time, um elenco muito superior ao do Boca Juniors. Os argentinos simplesmente empataram *todos* os jogos do mata-mata. Escoraram-se em seu goleiro, Sergio Romero, e passaram nos pênaltis em todas as fases. Ora, não era possível que um time com uma campanha tão feiosa fosse se sagrar o grande vencedor da Libertadores. Era injusto.

A gente sabe que justiça não é uma das características mais marcantes do futebol. Então precisávamos nos fiar no que sabíamos fazer. Jogar bola. E foi o que o Fluminense fez. Todas aquelas atuações e resultados ruins das últimas semanas não entraram em campo no dia 4. Com um 4–2–3–1, o time estava seguro como há muito não víamos.

Fábio no gol; Samuel Xavier, Nino, Felipe Melo e Marcelo na defesa; André e Martinelli na volância; Ganso, Arias e Keno na meiuca ofensiva e Cano de centroavante. John Kennedy, que havia marcado gols em todas as fases do mata-mata, começou no banco. Pessoalmente, foi uma escalação que me agradou. Embora, como a maior parte da torcida, eu também torcesse o nariz para a escolha de iniciar com os três veteranos Felipe Melo, Marcelo e Ganso ao mesmo tempo. Como correriam atrás do jovem Valentín Barco?

Felizmente, essas preocupações não se criaram. Não via o time entrar tão concentrado como entrou no sábado há muito tempo. Parece que o problema no Brasileiro era foco mesmo, afinal de contas. No primeiro tempo, os erros foram quase nulos. O domínio e a posse de bola eram todos nossos. A atuação sólida fortalecia nossa confiança no título.

Aos 35, Keno tabelou com Samuxa e deu uma assistência açucarada para Cano, que, como sempre, não desperdiçou. Um a zero para o Fluminense. O argentino chegou à marca de 13 gols na Libertadores, artilheiro isolado e melhor jogador da competição. É o Rei da América, não tem jeito. O título estava cada vez mais próximo.

No segundo tempo, o time deu uma recuada, e o Boca passou a ter mais chances. Acabou empatando, aos 27, com Advíncula num chute de fora da área. O lateral-esquerdo Diogo Barbosa, que havia entrado no lugar de Marcelo, teve a chance de fazer o gol do título aos 48. Mas não era pra ser dele. O destino havia reservado essa incumbência ao jovem John Kennedy Batista de Souza.

Em nenhum momento fiquei com a impressão de que o jogo iria para os pênaltis. Em nenhum momento temi que Romero fosse agarrar várias cobranças e que perderíamos novamente, em casa, nas penalidades máximas. Em nenhum momento temi que o Boca fosse virar e vencer no tempo normal ou na prorrogação. Era nossa. Tinha que ser. E foi.

Aos 8 minutos da prorrogação, o mesmo Diogo Barbosa que havia perdido o gol do título fez ótima jogada com Keno, que ajeitou de cabeça para que JK chegasse fuzilando. Rede estufada e golaço. Do nosso menino-rei. Tinha que ser dele. Tinha que ser dele pra caralho.

O garoto de 21 anos que teve seus altos e baixos no Fluminense. Que foi emprestado para a Ferroviária no início do ano. Que voltou e cravou seu nome na história do clube. O gol do título era dele. Ele sabia disso. Diniz sabia disso. A gente sabia disso. Às vezes, não há prova, você simplesmente sabe.

Catarse na comemoração, como não poderia deixar de ser. JK correu pra galera e abraçou seus familiares presentes na arquibancada. Tá na regra que fazer isso rende cartão amarelo. Sem qualquer tipo de tato (ou com malícia — a arbitragem favoreceu o Boca em inúmeras oportunidades. Conmebol sendo Conmebol), o colombiano Wilmar Roldán amarelou JK pela segunda vez, o que fez com que ele fosse expulso. Nada mais JK do que isso. Nada mais Fluminense do que isso.

Íamos passar todo o segundo tempo da prorrogação com um homem a menos. Mas Fabra nos deu um presente na forma de um tapa em Nino e também foi expulso. Seguramos a vantagem nos 15 minutos finais mais acréscimos e fomos de glória eterna. No melhor sentido da expressão.

O grito de É CAMPEÃO foi libertado, enfim. O sentimento de alívio suplantou o de felicidade. Não me entenda mal. Eu estava muito, muito feliz. Muito, muito mesmo. Pulei e gritei com minha família. Mas estava mais aliviada do que feliz. Ufa! Foi. Deu certo. Dessa vez, deu certo. O filme não se repetiu. O roteiro mais lindo terminou da maneira mais doce possível, com a gente levantando a taça. Foi perfeito do jeito que foi. Eu não mudaria nada.

O jogo teve todos os elementos de uma final digna de ser chamada de final. Vantagem mínima, empate, vantagem mínima novamente. Expulsões, um herói recorrente, um herói vindo do banco. Um centroavante de renome internacional sendo neutralizado — é, Cavani, o tempo passa pra todo mundo. Uma jovem promessa igualmente anulada pela defesa tricolor — é, Barco, a vida vai te ensinar a segurar a língua. Uma camisa pesadíssima em sua 12ª final de Libertadores, em busca de seu sétimo título. Uma camisa pesadíssima em sua segunda final, em busca de seu primeiro título. O melhor futebol venceu. A melhor história venceu.

Foram quinze anos, quatro meses e dois dias de espera. Chegou a hora. Ganhamos a Libertadores. Nosso sonho não terminou. Ele está apenas começando. SOMOS!

P.S.: Em 1999, Fluminense e Manchester City disputaram a terceira divisão de suas ligas nacionais. Em 2023, venceram pela primeira vez as principais competições de seus continentes, após serem vices nas primeiras tentativas de levantar o caneco. Se tudo der certo, os times de Diniz e de Guardiola se enfrentarão na final do Mundial de Clubes, em dezembro. Torço muito por isso. Quem sabe Cano não vence a disputa com Haaland e não nos sagramos campeões mundiais? Sonhar é de graça.

P.S.2: Vai acontecer o que eu desejava. A LDU venceu o Fortaleza na final da Copa Sul-americana e será nossa adversária na Recopa, em fevereiro de 2024. A vingança vem. *muahahahaah*

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