Troco para R$ 20
A impessoalidade e o apartamento do RioCard
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Os passageiros sobem, e a maioria nem olha na minha cara. Não dá um bom-dia, um boa-tarde, um boa-noite. Já botam o pé no degrau com o cartão na mão. Até cumprimentam o motorista às vezes, mas nada pra mim. Aproximam o cartão daquele trambolho amarelo, trim, roleta rola, passageiro passa. Não preciso fazer nada. Só fico lá, sentado. Vejo toda a paisagem entre Bonsucesso e Pavuna dentro do meu 920, esse caixote de lata que é meu ganha-pão há uns 25 anos já.
Antigamente que era bom. Não tinha essa de bilhete único, não. Era tudo no dinheiro. Trinta e cinco centavos a passagem, pagou com cinquenta, xá comigo, quinze de troco. Um real, dez reais, aquela nota bonita do Pedro Álvares Cabral… Troco não era um problema. Era muita moeda, muita nota que rodava.
Até com aqueles vales-transporte era mais legal. A gente fazia amizade com os caras que vendiam os papeizinhos no ponto. Ali em frente ao cinema de Olaria tinha um monte. Facilitava a vida de todo mundo.
De uns tempos pra cá, começaram as mudanças. Tiraram os nossos assentos. Motorista fazendo dupla função. Mas eles falaram que não ia ter demissão de trocador. Ufa. Mas aí os amigos começaram a ser demitidos. Eu fui ficando, sei lá porquê. A Luciana, minha filha, falou pra eu já começar a fazer um curso técnico de segurança do trabalho, alguma coisa assim. Mas fui empurrando com a barriga, fui ficando e tô só vivendo um dia após o outro. Saio de casa às 5h, chego na garagem às 6h e já vou pra um dos poucos carros que ainda tem o lugar do cobrador.
Trá, cartão; trim, roleta. Umas 7h surgem as crianças com o RioCard da escola. Aí que eu começo a trabalhar mesmo. Se tão uniformizados, eu nem olho o cartão, já vou liberando a catraca. Sempre tem um espertinho querendo dar volta, aí eu não libero, não. Confesso que gosto de ver aquela fila de crianças e adolescentes com camisa de escola pública, esperando pra entrar no ônibus. Eles, sim, olham pra mim. Às vezes, eu tô distraído, pensando não sei no quê, daí eles falam: “libera aí, tio”. Tio… Dou risada e libero. Dei pra esquecer que já passei dos 50 confinado na minha Mercedes.
Quer me matar de raiva é quando o motorista, apressadinho, manda as crianças entrarem todas pelo porta de trás. O Wilson, que roda meio-dia, adora fazer isso. Que raiva, bicho. Fora os estudantes, não tem muita ação no meu dia a dia, não. Tem umas surpresas, às vezes, né? Tipo quando um jovem entra com um bilhete único e é daquele universitário, que precisa que eu libere. Mas isso é meio raro. Os idosos até são simpáticos, lá pela Vila da Penha entra um monte.
Vou te confessar uma coisa: sinto um pouco de inveja dos motoristas. Pô, dirigir dá um negócio na gente, uma sensação de poder, né? Ainda mais um veículo desse tamanho, com aquele volantão que a gente tem que esticar o braço pra fazer o retorno. Quando o ônibus tá cheio, tem umas passageiras que sentam no motor e ficam dando em cima dos pilotos. O Joabe, que ainda tá novo, faz sucesso com a mulherada. O Carlão, garganta, também tem suas admiradoras. (Espero que a Edilene não me ouça, senão não tem marmita amanhã).
Minha alegria é quando entram com dinheiro na mão. Nem sempre tem troco, mas a gente dá um jeito. Pergunta onde vai descer, troca com algum camelô. E assim vamos. Fico pra morrer quando já vão dando a nota pro motorista, como se eu não tivesse lá. A pessoa fica até com vergonha, mas quem mais fica mais constrangido sou eu. Veja bem, eu sei que não é culpa dela. Hoje em dia, quando tem assento do cobrador, quem senta é passageiro. Mas, pô, eu tô lá, com o uniforme da empresa… Posso fazer meu trabalho?
Já tamo em Coelho Neto, quase no fim da viagem. Lá vem outro. Raridade, não tá com cartão na mão. Pegou a carteira. Vai sacar o cartão, com certeza. Opa, tá abrindo a carteira. Não é cartão, tá mexendo nas notas. É uma nota de vinte! É uma nota de vinte!
Crônica originalmente publicada na newsletter Otto, disponível aqui.