Tudo o que passageiramente dura

Ana Carolina Santos
2 min readJul 6, 2017

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Corro pra pegar o ônibus. Eu estava do outro lado da rua e o sinal tava verde. Por sorte, os carros deram uma trégua e consegui correr pra pegar o ônibus. Alcancei-o. Respirando com dificuldade, adentrei. “O letreiro tá errado. Diz Penha em vez de Siqueira Campos”, aviso ao motorista. Passo na roleta e te vejo sorrindo pra mim. Sento ao seu lado e vamos ao nosso destino.
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Te encontro no campus. Coisa rara. Sempre fica aquele clima esquisito. Eu tento arduamente não falar nenhuma merda. Você se lembra em que período eu tô, isso me surpreende. Rumamos para o ponto de ônibus. “Aquele é o meu ônibus”, você diz. Eu digo: “Vai lá. Corre”. Você diz: “É, eu deveria ir. Ele não passa sempre”. Sinto que quer ficar. Mas me autossaboto e digo: “Então vai lá. Corre”. E você corre.
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Leio “Submarino” no banco alto. Havia acabado de começar aquele capítulo em que o Oliver vai encontrar a Zoe e eles meio que transam na cabine de iluminação do teatro. Seu ponto se aproxima. Sempre passa pela minha cabeça que você talvez suba no ônibus. Às vezes acontece, outras não. Quando senti uma presença ao meu lado, já sabia que era você, não precisei nem olhar. Fechei o livro e guardei-o na mochila.
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“Só temos até as 11h. O último ônibus parte às 11h”, digo num lamento. São 20h41 e estamos num bar. O tempo todo olhamos para nossos relógios de pulso. Penso em quão merda é essa situação. Não consigo aproveitar o tempo com você. Tudo dá errado. Os tópicos de conversa são errados. Tá tudo errado. Dá 10 pras 11h. “Tenho que ir”, digo, meio triste. Você me acompanha até o ponto final, porque é perto da sua casa. Conversamos mais. Penso se devo te beijar. Acabo não beijando. A solidão me engolfa na volta pra casa.
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Corro pra pegar o ônibus. Faço sinal, grito, gesticulo, bato na lataria. Mas ele caprichosamente parte sem mim. Não sei se você estava nele. Não importa, na verdade. “Nunca mais te encontrarei num ônibus”, penso, com tristeza, enquanto observo o número da linha no canto superior direito da traseira.

Leite, leitura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo, tudo, tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura

(Paulo Leminski)

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